O falecimento do presidente venezuelano
retoma a polêmica sobre o chavismo: Socialismo do Século XXI ou o velho
nacionalismo burguês?
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| | Venezuelanos receberam com dor a notícia da morte de Chávez |
No final da tarde desse dia 5 de fevereiro, o
vice-presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, foi à TV anunciar a morte
do dirigente Hugo Chávez. Foi o desfecho de uma luta de quase dois anos
contra o câncer anunciado pelo mandatário em junho de 2011. O segredo
com que o governo venezuelano tratou a enfermidade de Chávez até o seu
último minuto, além de despertar inúmeros boatos e suposições, não
permitiu que se soubesse o verdadeiro tipo de câncer que sofria, apenas a
localidade na região pélvica.
A grande maioria da população do país recebeu a notícia da morte de
Chávez com um misto de tristeza e consternação, assim como parte
significativa da esquerda, alinhada nos últimos anos com os rumos do
chavismo. O PSTU não se coloca ao lado da direita que comemora a morte
do dirigente venezuelano. Pelo contrário, nos solidarizamos com o povo e
os trabalhadores da Venezuela e lamentamos profundamente a dor que
compartilham. No entanto, não podemos nos eximir de travar um debate
sincero sobre o real significado do chavismo, ainda mais num momento em
que o mundo discute o tema e os rumos do país que por 14 anos dividiu
águas na esquerda em todo o planeta.
Nacionalismo de boina e coturnos
Oriundo de família pobre e filho de professores, Chávez ainda jovem
trocou o sonho de viver do beisebol pela carreira militar. Na caserna,
aderiu ao 'nacionalismo' bolivariano e fundou o Movimento pela Revolução
Bolivariana. Em 1992 liderou um golpe fracassado contra o então
presidente Carlos Andrés Pérez, um governo neoliberal afundado em
denúncias de corrupção e que enfrentava uma grave crise econômica e
política.
Três anos antes, em 1989, o governo de Andrés Pérez enfrentou um
grandioso processo de mobilizações populares que virou Caracas e
adjacências de cabeça para baixo. O país de então, submetido aos ditames
do FMI, era um dos mais pobres e desiguais da América Latina. O aumento
da passagem de ônibus foi o estopim que desatou uma insurreição
generalizada. A repressão encabeçada pelo Exército a mando de Pérez
deixou um saldo oficial de 300 mortos, mas o número real chega à casa
dos milhares. A revolta foi sufocada, mas anos depois o país ainda era
um barril de pólvora prestes a explodir. E Chávez percebeu isso.
Após o malfadado golpe contra Andrés Pérez, Chávez é preso, mas se
transforma numa referência política nacional e se constrói enquanto
alternativa às décadas de domínio da direita. Perdoado e solto dois anos
depois, o bolivariano disputa as eleições presidenciais com seu
Movimento V República. Numa conjuntura de profundo desgaste dos partidos
tradicionais, o discurso nacionalista e em defesa dos pobres atrai
grande parte da população e importantes setores da classe média,
garantindo a vitória que superou os 40 anos de hegemonia da direita,
alternados entre a AD (Ação Democrática) e o Copei (Comitê de
Organização Política Eleitoral Independente).
Na América Latina, uma onda de revoluções sacudia países como Argentina,
Equador e Bolívia, colocando em xeque a política neoliberal imposta
pela velha elite e a direita. Chávez tenta se relocalizar nesse
conjuntura turbulenta e radicaliza seu discurso, propagando o
"Socialismo do Século XXI", ainda que, centralmente, não tenha provocado
profundas rupturas e se proponha a governar para "pobres e ricos". Mas o
seu estilo instável e choques com setores da burguesia e do próprio
governo, como a direção da estatal do petróleo, a gigante PDVSA,
começaram a polarizar cada vez mais o país.
Um país polarizado
Em 1999, Chávez convocou uma Assembleia Nacional Constituinte onde,
entre outras reformas, aumentou o mandato de cinco para seis anos. Em
2000 vence as eleições que legitimariam a nova Carta Magna e obtém
maioria também no Parlamento, além de hegemonia nos demais poderes, como
o judiciário. Nos anos seguintes, concentra e centraliza cada vez mais o
poder em suas mãos.
Tal situação culminou na tentativa de golpe de Estado em 2002, quando um
setor das Forças Armadas e da burguesia, reunida na Fedecamaras (
Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio), sequestrou Chávez e
instalou seu dirigente Pedro Carmona no Palácio de Miraflores. Os EUA
reconheceram em tempo recorde o governo golpista, mas não contavam com a
ação das massas para contrariar seus planos. Em um episódio
surpreendente, o povo pobre da capital desceu dos morros e tomou as
ruas, exigindo a volta do presidente. A ação das massas frustra, assim, o
golpe relâmpago que duraria apenas 48 horas.
A partir daí Chávez se lança numa tentativa de forjar um governo de
união nacional a fim de distensionar a polarização, ao mesmo tempo em
que turbina os investimentos sociais através das chamadas 'misiones',
financiadas com os recursos do petróleo. Os recorrentes 'lockouts' e o
boicote de parte da burguesia serviram para desmoralizar e isolar cada
vez mais esses setores enquanto que, no Parlamento, a desastrada
política de boicote perpetrada pela direita deixou o caminho livre o
chavismo garantir ampla maioria. No movimento, o governo Chávez
recrudescia sua política autoritária, reprimindo greves e tentando
cooptar o movimento sindical e popular.
Em 2006, seguindo sua escalada autoritária, funda o PSUV (Partido
Socialista Unificado da Venezuela), como forma de centralizar a esquerda
venezuelana e colocá-la sobre sua tutela. Os partidos e organizações
que não aceitaram se submeter à disciplina chavista são tachados de
"contrarrevolucionários" e "traidores".
Socialismo ou nacionalismo burguês?
Desde que proclamou seu objetivo de implantar o "Socialismo do Século
XXI" na Venezuela, Chávez ocupou lugar de destaque nos debates da
esquerda em todo o mundo. Estaria mesmo o caudilho levando o país rumo
ao socialismo, mesmo que em sua versão particular? Por mais que seja
atraente a ideia de um grande líder socialista dirigindo um processo
revolucionário em um importante país da América Latina, isso está muito
longe da realidade.
Uma economia socialista pressupõe a expropriação da burguesia e a sua
planificação, a fim de colocar os recursos do país em favor da maioria
da população, superando os problemas históricos como a pobreza e o
desemprego. Da mesma forma, o monopólio estatal do comércio exterior é
fundamental para proteger o país do imperialismo. Em todo o processo de
restauração capitalista, são esses os pilares que são destruídos a fim
de permitir a volta do domínio do capital. Foi assim na então União
Soviética, na China, em Cuba, etc. Na Venezuela isso não ocorreu porque
tais medidas nunca existiram.
Mas e as nacionalizações? A tomada pelo Estado de algum setor da
economia não serve como medida para definir um país como socialista.
Governos burgueses anteriores a Chavez, como Cárdenas no México ou
Velasco no Peru, realizaram nacionalizações muito mais profundas e
radicais que o dirigente bolivariano e nem por isso foram classificados
como socialistas.
Outro elemento importante, talvez o maior deles, para se caracterizar o
governo Chávez, é o papel desempenhado pelas Forças Armadas. Em todas as
revoluções em que houve a expropriação da burguesia, as Forças Armadas
foram destruídas. Isso ocorre porque o Exército é quem, no final das
contas, garante o domínio da burguesia e de seus interesses. E nenhuma
classe social entrega de bandeja seus privilégios para outra classe.
Chávez não só não destruiu as Forças Armadas, como se apoiou nelas para
governar. E nem poderia destruir, haja visto que ele próprio se originou
desse setor.
Se Chávez realmente estivesse levando a Venezuela ao socialismo com as
Forças Armadas do Estado burguês, seria um caso único na História.
Infelizmente, não é isso o que ocorre.
As nacionalizações de Chávez
Além da fraseologia radical, o aspecto mais recorrente que se aferram os
chavistas para defender o governo venezuelano é a nacionalização levada
a cabo por Chávez nessa década e meio de governo. Mas o que
significaram essas nacionalizações?
De fato, os anos de governo Chávez representaram o aumento do Estado na
economia. As nacionalizações, porém, tanto as realizadas como forma de
enfrentar o desabastecimento imposto por empresários a fim de desgastar
politicamente o governo, como aquelas fruto da mobilização dos
trabalhadores, se deram de forma negociada, via indenizações. Mais que
isso, resumiu-se à compra de ações das empresas, constituindo assim
empresas mistas em que o Estado gere os negócios junto com a iniciativa
privada.
Empresas mistas que atuam, inclusive, na exploração do petróleo, o carro
chefe da economia venezuelana. A Lei Orgânica dos Hidrocarbonetos de
2001 possibilitou a criação dessas empresas que permitem ao Estado
explorar os recursos naturais do país em conjunto com grandes
multinacionais. Empresas como Chevron, Exxon-Mobil e BP atuam junto com o
Estado na exploração de reservas de petróleo e respondem por algo como
40% da produção no país.
Isso significa que, se por um lado as nacionalizações parciais
representaram um relativo avanço, por outro não representam verdadeiras
nacionalizações, ou seja, não colocaram nas mãos do Estado a
administração dos recursos naturais e da economia do país. Nesse
sentido, não tem comparação com as nacionalizações realizadas por outros
governos nacionalistas na América Latina . Na Venezuela de Chávez, o
capital privado e as multinacionais continuam a dar as cartas.
Subproduto dessa relação entre o Estado, a cooptação de dirigentes do
movimento, o capital privado e a corrupção, foi o surgimento da chamada
“boliburguesia”, a burguesia “bolivariana”, que enriquece graças aos
negócios com o Estado. Entre os exemplos mais proeminentes desse setor
estão o presidente da Assembleia Nacional e um dos principais dirigentes
do chavismo, Diosdalo Cabello e o presidente da PDVSA, a estatal do
petróleo, Rafael Ramírez. Ambos figuram entre os homens mais ricos da
Venezuela. Cabello é dono de três bancos, indústrias e ações de empresas
que mantém negócios com o Estado.
Os problemas estruturais persistem
Nos anos da era Chávez, a pobreza teve uma significativa redução. Caiu
de 49,4% em 1999, quando o militar assumiu a presidência, para 29,5% em
2011, segundo a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e o
Caribe). A média da América Latina é de 28,8%. Ou seja, apesar dos
avanços, no Socialismo do Século XXI de Chávez, quase um terço da
população está abaixo da linha de pobreza. Isso acontece porque, assim
como ocorreu no Brasil nos últimos anos, os programas sociais
compensatórios podem atenuar momentaneamente a miséria, mas não são
capazes de resolver os problemas estruturais de um país periférico
pilhado por séculos.
Ainda mais que os governos anteriores, Chávez se beneficiou da alta do
petróleo no mercado internacional. Entre 1999 e 2011 o valor das
exportações de petróleo aumentou 315%, puxado pelo aumento da demanda
dessa commoditie. Hoje, a economia venezuelana é completamente
dependente da exportação do produto, que representa 90% do total das
exportações do país e algo como 30% do PIB venezuelano. Foi isso o que
permitiu Chávez financiar os programas sociais e as nacionalizações, sem
maiores rupturas ou enfrentamentos com a burguesia ou o imperialismo.
Mas isso não vai durar para sempre.
Por outro lado, a economia do país segue vulnerável às crises
internacionais. Nos últimos anos a dívida externa explodiu (passou de
14% do PIB em 2008 para 30% em 2010) e a inflação atingiu os mais altos
patamares do mundo, fechando 2012 em 20%. A violência urbana, por sua
vez, se transformou num grave problema social para muito além da classe
média.
Chávez e o imperialismo
Assim como ocorre com o castrismo, geralmente se utiliza o argumento do
enfrentamento com o imperialismo para justificar a ausência de avanços
'maiores'. Deste ponto de vista, mesmo que Chávez não tenha avançado
rumo ao socialismo, pelo menos teria firmado uma posição
antiimperialista na região. Mas até que ponto isso é verdade? Se é fato
que houve confrontos com o imperialismo, como em 2002, também é verdade
que, em essência, o chavismo não representa um projeto antagônico aos
interesses imperialistas.
Apesar do discurso de Chávez, os EUA são o principal destino das
exportações de petróleo da Venezuela. Ou seja, num contexto de guerras e
crises no Oriente Médio, os EUA não podem descartar o país como fonte
desse recurso. E o governo bolivariano, por sua vez, depende dos dólares
do país de Obama. Após o desastre da tentativa de golpe em 2002, os EUA
perceberam que a melhor opção era apostar na estabilidade política da
Venezuela enquanto seus interesses eram garantidos. Por isso que, por
exemplo, a OEA (Organização dos Estados Americanos) apoiou a decisão da
Justiça de prolongar indefinidamente o mandato de Chávez quando este
estava hospitalizado em Cuba e impossibilitado de tomar posse. Tal
posição do órgão multilateral contrariou setores da própria direita
venezuelana.
Outro trágico exemplo da submissão da política externa de Chávez ocorreu
em 2011, quando o governo venezuelano deixou a esquerda perplexa ao
prender o representante das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia) que visitava o país, o jornalista Joaquín Pérez Becerra, e
enviá-lo ao governo da Colômbia. Chávez assumiu publicamente a
responsabilidade pela medida, que passou ao largo de qualquer lei
internacional em defesa dos refugiados e exilados políticos, apenas para
atender um pedido do presidente colombiano Juan Manuel dos Santos,
sucessor de Álvaro Uribe
Nos dois últimos anos, Chávez ainda hipotecou seu apoio às ditaduras
confrontadas com a Primavera Árabe. Após apoiar ativamente a ditadura de
Kadafi na Líbia, até seu último minuto de vida o presidente venezuelano
apoiou o ditador sírio Bashar Al Assad, que empreende uma brutal
repressão contra a resistência, assassinando dezenas de milhares de
opositores. Assad chegou a dizer que a morte do venezuelano representava
para ele “uma perda pessoal”.
O segredo como política de Estado
Os últimos meses de vida do presidente Chávez seguiu à risca o roteiro
típico das ditaduras e dos governos autoritários. Meses após anunciar
que estava livre do câncer, Chávez veio a público no dia 9 de dezembro
informar que sofrera uma recidiva e que viajaria a Cuba para se tratar.
Confessando a gravidade da situação, no entanto, reafirmou seu vice
Nicolás Maduro como sucessor político.
Seguem-se então semanas de apreensão após a complexa cirurgia que
realizaria na ilha. O governo venezuelano só divulgava uma informação
negativa após ela ter já vazado na imprensa, como foi a infecção
respiratória que o presidente contraiu dias após a intervenção
cirúrgica. Mesmo assim, cada informe era divulgado repleto de um
inverossímil otimismo, passando a ideia que era apenas questão de tempo
para que Hugo Chávez voltasse à ativa. Cada boato que fosse o contrário
disso era respondido como um ataque da direita e do imperialismo para
desestabilizar o governo bolivariano.
Na verdade, desde a recente internação de Chávez, passando pela
surpreendente volta a Caracas, é muito pouco provável que a cúpula
chavista não soubesse de sua real condição. Ou seja, escondeu-se até o
fim o estado do presidente para que houvesse tempo de reacomodar as
forças e interesses heterogêneos no interior do chavismo, e garantir o
processo de transição para se perpetuar no poder. Por fim, a volta de
Chávez à Venezuela no estágio final da doença dá a impressão de tentar
garantir que a morte do dirigente provocasse o máximo de comoção e
beneficie eleitoralmente o governo.
A responsabilidade de dizer a verdade
Respeitamos a dor diante da recente morte de Chávez. No entanto, isso
não nos exime de dizer a verdade aos trabalhadores. O fenômeno do
chavismo representa um nacionalismo burguês num tempo em que não há mais
margem de manobra para uma política nacionalista num país periférico e
semicolonial. Não há como garantir uma melhor significativa de vida à
maioria do povo venezuelano sem romper de fato com o capitalismo e o
imperialismo.
Mesmo inconscientemente, as massas venezuelanas estão dando conta dessa
dura realidade. Porém, desgraçadamente, quando olham para os lados em
busca de uma alternativa, só podem ver a direita pró-imperialista. Nas
eleições de outubro passado, embora Chávez tenha ganhado com folga, o
candidato da direita, Henrique Capriles, conquistou seis milhões de
votos, dois milhões a mais que nas eleições passada. Com a inevitável
crise do chavismo diante do agravamento da crise internacional e a
ausência de sua principal figura, essa direita irá monopolizar o papel
de oposição. Isso porque quase a totalidade da esquerda passou de malas e
bagagens para o lado do governo, capitulando de forma escancarada ao
nacionalismo burguês de Chávez.
É necessário agora que a esquerda socialista e os ativistas honestos
façam uma profunda reflexão sobre o chavismo e o atual rumo da
Venezuela, apostando na organização independente dos trabalhadores e num
programa socialista de ruptura com o capitalismo para a crise que se
avizinha. Longe de ser um desrespeito ao atual momento pelo qual passa o
país, é uma necessidade premente que a história cobrará no futuro.
Retirado do Site do PSTU