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| | 'Quem come a ajuda?' pergunta charge |
Neste dia 12 de janeiro completam-se 3 anos do forte
terremoto que atingiu Porto Príncipe, capital haitiana. No dia 12 de
janeiro de 2010, 35 segundos foram suficientes para destruir 70% da
principal cidade do Haiti, deixando um saldo de 1,5 milhão de
desabrigados e mais de 200 mil mortos. As imagens da destruição e do
desespero de haitianos e haitianas foram exaustivamente exibidas em todo
o mundo.
A comoção mundial foi enorme, e fez com que milhões de cidadãos comuns
tirassem de seus armários agasalhos e roupas ou pequenas quantias de
dinheiro para doar à reconstrução do país. Até estrelas de Hollywood,
como a atriz Angelina Jolie, desembolsaram vultuosas quantias de
dinheiro para ajudar as crianças haitianas. Os grandes bancos
internacionais e governos também fizeram sua parte. O Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), ao lado do Fundo Monetário
Internacional (FMI), os governos dos Estados Unidos, Canadá e França,
que até então eram os maiores credores da dívida pública haitiana,
perdoaram-na em sua quase totalidade.
O Plano de Reconstrução do Haiti previa o investimento de mais de 12
bilhões de dólares em alguns anos para que o país fosse reconstruído e
começasse a dar os primeiros passos na superação de sua situação de
miséria crônica. Três anos passados, após promessas, perdões e o
desaparecimento total do país da mídia internacional, é hora de vermos o
balanço do que foi feito.
O fracasso em números
Na charge acima, retirada de um artigo publicado em um dos principais
jornais haitianos (Le Nouvelliste), com o título “Quem come a ajuda?”,
um mirrado haitiano aparece no meio de dois enormes e bem vestidos
estrangeiros brancos. O haitiano olha de um lado para o outro se
perguntando: “Não vai sobrar nada pra mim?” enquanto os dois brancos se
deliciam comendo a “ajuda” que é enviada ao Haiti: “uma colher pro
Haiti, cinco colheres pra mim”, dizem eles.
Essa charge publicada há poucos dias resume bem o quadro atual em que
sobrevivem milhões de haitianos. Segundo relatório publicado pelo
organismo americano Center for Global Development, cerca de 2,3 bilhões
de dólares foram destinados ao Haiti entre 2010 e 2011. Desse montante,
cerca de 1% foi parar nas mãos do governo haitiano; a maior parte, no
entanto, foi destinada para empresas haitianas ou estrangeiras e ONGs
internacionais. Segundo outro estudo, feito pela agência norte-americana
Center for Economic and Policy Research, 75% de todo dinheiro enviado
pela USAID (Agência de Desenvolvimento dos EUA) ao Haiti, foi parar em
empresas das regiões de Washington, Maryland e Virgínia. Os haitianos
começam a se questionar se não estão no meio de negócios realizados
entre os norte-americanos e os próprios norte-americanos. O governo
haitiano, por outro lado, se mantém completamente impotente diante de
tal realidade, com seus chefes cotidianamente envolvidos em casos de
corrupção e escândalos para abocanhar as migalhas que sobram da “ajuda”.
O fracasso da chamada cooperação internacional em reconstruir o país é
visível, física e estatisticamente. Ainda hoje, cerca de 350 mil pessoas
continuam morando em barracas e tendas improvisadas nas praças e
terrenos de Porto Príncipe, com péssimas condições de higiene, saúde e
alimentação. Cerca de 1 milhão de pessoas segue vivendo nas mais de 250
mil casas que foram marcadas com sinais vermelhos e amarelos, pois
correm risco de desabamento ou são impróprias para abrigarem moradores.
Desde o terremoto, apenas 5911 casas foram construídas e cerca de 18 mil
estão sendo reparadas atualmente.
Dados como esses se reproduzem em todos os níveis da operação de
“reconstrução”. O fracasso de tal empreendimento tem causas mais
profundas, que não se limitam à falta de dinheiro, à incompetência dos
agentes envolvidos e tampouco à corrupção de haitianos ou estrangeiros.
Tal fracasso já era previsível desde o início da “reconstrução”, já que
seu plano foi elaborado para dar errado... para alguns.
A “cooperação internacional”
Mas não são todos que saem perdendo. A chamada “cooperação
internacional”, sistema que administra a “ajuda” ao Haiti, articula
governos imperialistas e suas agências de desenvolvimento (como a USAID
norte-americana), ONGs de todo o mundo, empresários e grandes
organizações internacionais, como a ONU e o Banco Mundial. Esse sistema
obedece à sua própria lógica, a lógica da reprodução da pobreza, que
mantém os países subdesenvolvidos no subdesenvolvimento e responde aos
interesses dos centros imperialistas.
Basta olharmos hoje para a situação de muitos países africanos que se
libertaram de suas antigas metrópoles nas décadas de 1960 e 1970, como
Moçambique, Angola, Senegal, entre outros, para entendermos onde se
situa o Haiti. Nas últimas décadas, esses países foram completamente
invadidos por ONGs internacionais e sofreram diversos tipos de
intervenções por “missões de paz” da ONU, como atualmente é o caso do
Mali. As “missões humanitárias” em países africanos, bem como no Haiti,
já duram muito tempo e só deixam um rastro atrás de si: mais miséria.
Isso levou o escritor Graham Hancock a chamar os grandes agentes da
“ajuda internacional” de “senhores da pobreza”. Quanto mais pobreza,
mais necessária é a presença de ONGs e de “intervenções humanitárias”.
Quanto mais pobreza, mais se passa a ideia de que os negros africanos ou
haitianos são completamente incapazes de se governar, o que justifica a
presença das intervenções e ocupações militares. Quanto mais ONGs e
“ajuda humanitária”, mais pobreza e colonização. O Haiti hoje é parte
dessa lógica, que não começou a ser determinante apenas após o
terremoto, mas funciona cada vez melhor desde as ditaduras de Papa e
Baby Doc.
As grandes ONGs internacionais abocanham a maior parte dos recursos que
são destinados ao país. Basta andar algumas horas por Porto Príncipe
para perceber que há dois mundos diferentes e incomunicáveis – o mundo
dos brancos, estrangeiros, e o mundo dos negros, haitianos. Os
cooperantes internacionais comem do bom e do melhor em restaurantes que
se proliferaram pelos bairros mais ricos de Porto Príncipe nos últimos
anos. Andam de jipes e caminhonetes 4x4, ostentando seus óculos escuros e
celulares de última geração. Moram em mansões ou se hospedam em hoteis
que custam mais de 100 dólares a diária. Os cooperantes internacionais
vivem vidas que não poderiam viver em seus países, vidas de burgueses. A
parte mais nobre de Porto Príncipe, o subdistrito de Petiónville,
recebeu até um novo shopping, onde os brancos podem fazer suas compras
sem serem incomodados pela visão de uma cidade às avessas.
Além de sugarem as riquezas do país e terem dezenas, muitas vezes
centenas de trabalhadores assalariados sob suas ordens, as ONGs prestam
proveitosos serviços para aqueles que se aproveitam da miséria do povo. A
ONG brasileira Viva Rio, por exemplo, amplamente conhecida no Rio de
Janeiro pelo seu “valoroso” trabalho prestado nas comunidades de
periferia ao lado da assassina Polícia Militar, hoje financia projetos
nas periferias de Porto Príncipe que visam cooptar lideranças populares
para seus empreendimentos, tentando, assim, garantir a paz da miséria em
cima dos barris de pólvora que são essas comunidades. Ao lado da
ocupação militar, que “garante a paz” pela violência, as ONGs “garantem a
paz” pela cooptação e contenção da rebeldia popular.
A paz a serviço de quem?
Em uma pequena cidade no norte do Haiti, com cerca de 9 mil habitantes,
foi inaugurado, em abril do ano passado, aquele que tem o potencial para
ser o maior parque industrial do Caribe. Uma parceria entre o governo
haitiano, a embaixada dos EUA e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, quer gerar, nos próximos 5 anos, cerca de 20 mil
empregos diretos no parque industrial de SONAPI, que tem potencial para
empregar até 65 mil pessoas, dependendo de sua capacidade de atrair
investidores estrangeiros. A empresa coreana Sae-A, uma das maiores
manufatureiras de roupas do mundo, já ocupou os primeiros galpões e
serve de exemplo aos investidores.
A construção dessa zona franca, iniciada há 2 anos, já começou polêmica.
As famílias que possuíam plantações no território onde foi
posteriormente instalado o empreendimento perderam suas terras do dia
para a noite. Um padre com quem conversei, hoje líder da associação dos
camponeses afetados pela construção do parque, me contou que os
agricultores foram informados que perderiam suas terras no mesmo dia em
que as perderam. “Nem o prefeito de Caracol sabia que o parque seria
instalado na cidade”, disse ele. O empreendimento foi aprovado na alta
cúpula da burocracia norte-americana e repassado às autoridades
haitianas, que o implementaram.
Caracol e as cidades vizinhas ao parque devem receber milhares de
imigrantes nos próximos anos, ávidos em busca de um emprego num país com
taxa de desemprego formal de mais de 80%. É de comum conhecimento que a
cidade se tornará uma enorme favela. Um funcionário haitiano da
embaixada dos EUA, que preferiu não ser identificado, me disse um dia:
“todo mundo sabe que Caracol vai ser uma nova Cité Soleil”, fazendo
referência ao bairro mais pobre da América, na periferia de Porto
Príncipe, que cresceu assustadoramente nos últimos anos com a presença
de trabalhadores em busca de emprego na indústria de transformação.
Ao se mudarem para Caracol nos próximos anos esses imigrantes, talvez
ainda com alguma esperança de levarem uma vida melhor, se depararão com
situações muitas vezes piores do que possuíam antes de se mudar, já que
não terão onde morar, seu acesso a água potável será muito difícil,
trabalharão muito para ganhar um salário de miséria, de 25 a 30 dólares
por semana e sofrerão enormes abusos por parte de seus chefes. Os
grandes empresários capitalistas serão os principais beneficiados com
isso, não apenas os donos das fábricas manufatureiras, mas os grandes
burgueses acionistas de marcadas como Levi's, GAP, Tommyhilfinger,
Timberland e muitas outras que verão no Haiti grandes oportunidades de
lucros.
Uma ocupação militar para manter tudo sob controle
Em meio a tamanha exploração, a revolta e indignação por parte dos
operários e operárias não tardará a chegar. A resposta dos empresários,
do governo haitiano e da Missão da ONU será rápida e eficiente –
repressão e violência. A história se repetirá aos trabalhadores.
A MINUSTAH (Missão da ONU no país, encabeçada pelo governo brasileiro) é
a principal agente da repressão. Para se ter uma ideia da necessidade
imperiosa da permanência das tropas da ONU no país, um exemplo pode ser
ilustrativo. No início do ano passado, o sindicato dos operários da zona
franca de Ouanaminthe, cidade localizada na fronteira com a República
Dominicana, ameaçou realizar um piquete e parar os mais de 6 mil
operários do parque industrial. Apenas a possibilidade do piquete e da
greve por melhores condições de trabalho fez com que a MINUSTAH
deslocasse soldados chilenos para a porta da zona franca e impedisse o
sindicato de tomar qualquer atitude. As tropas da ONU foram acionadas
pelos empresários à primeira manifestação de um conflito trabalhista,
cumprindo um papel de segurança da empresa.
Para se ter uma ideia do poder que têm os trabalhadores industriais no
Haiti, basta nos atermos a alguns dados. A cidade de Ouanaminthe, por
exemplo, possuí cerca de 100 mil habitantes. Seu efetivo policial é de
cerca de quinze policiais, o que demonstra por si só que o Haiti não é
um país violento, como nos querem fazer acreditar (ou algum de nós
consegue imaginar uma de nossas cidades com 100 mil habitantes e tal
quantidade de policiais?). O Haiti também não possui um exército
nacional, que foi dissolvido pelo ex-presidente deposto Jean-Bertrand
Aristide. A única força militar capaz de conter a rebeldia de milhares
ou dezenas de milhares de operários tem um nome, se chama MINUSTAH e é
uma das principais políticas internacionais defendidas pelos sucessivos
governos do Partido dos Trabalhadores no Brasil. As tropas brasileiras
hoje presentes no Haiti têm apenas uma função: garantir que tudo
continue como está. Nós, trabalhadores brasileiros, temos o dever de nos
colocar ao lado dos trabalhadores haitianos, e não de seus carrascos,
os soldados brasileiros.
Passados três anos do terremoto e quase 9 anos da intervenção militar da
ONU, nós do PSTU reafirmamos: Fora as tropas brasileiras e
internacionais do Haiti! Só haverá reconstrução com soberania! Viva a
luta dos trabalhadores e trabalhadoras haitianos!
Retirado do Site do PSTU