sábado, 17 de setembro de 2011

Após romper com o PSOL, grupo do Maranhão anuncia entrada no PSTU. Leia entrevista

‘Nossa perspectiva é que o PSTU se fortaleça como referência de esquerda no Maranhão’


Saulo No início do ano um grupo de 49 militantes do PSOL, organizados no grupo CAC (Coletivo de Ação Comunista), divulgou um manifesto em que anunciava sua saída do partido. A ruptura se deu após embates entre o grupo e a direção nacional da sigla, que chegou a intervir no estado para impor a filiação de ex-petistas no partido. Nos meses que se seguiram o grupo se aproximou do PSTU e, após uma série de debates, resolveu por se filiar ao partido, processo que se oficializará em um ato público no próximo dia 22.

O Portal do PSTU conversou com Saulo Arcangeli, dirigente do CAC, ex-candidato do PSOL ao governo do Maranhão, que explicou as desavenças com o antigo partido e as bases em que se deram a aproximação e a entrada no PSTU.



Explique como se deu o processo de ruptura do grupo com o PSOL

Saulo Arcangeli Estávamos num grupo de 49 companheiros, pessoas do movimento popular, professores, servidores públicos que realmente construíram o partido e ficamos sete anos verificando que o PSOL passou por um processo de degeneração muito rápido. É um partido que não segue o seu programa, não tem uma estratégia socialista, que buscou nesses anos só via institucional, e que abandonou as lutas. Então foram sete anos de embate e o processo de desgaste foi acelerado por uma intervenção da direção nacional para a imposição da filiação de ex-petistas. Foi um processo em que fizemos uma discussão estadual e que a direção nacional não respeitou, já que a direção estadual, após um processo em que garantiu ampla defesa, votou pela impugnação desses filiados, de acordo com estatuto do partido. Mas a direção nacional resolveu garantir a filiação, passando por cima da direção estadual. Sem nenhum processo de diálogo, sem nenhum critério para a filiação. Então, a gente viu que o processo de degeneração do PSOL acabava de se completar. E achamos a partir daquele momento que não tínhamos mais espaço no partido. Um grupo com o qual dialogávamos nacionalmente também ratificou essa posição da direção nacional e para a gente acho que não tinha mais como nos manter no partido e resolvemos sair coletivamente no partido.


E o que vocês fizeram após a ruptura? Como foi a aproximação com o PSTU?

Os próprios companheiros da direção estadual e da direção nacional do PSTU nos procuraram e nós abrimos o diálogo. Criamos uma coordenação estadual do nosso grupo ao qual pertencíamos com a direção do PSTU, e realizamos dois seminários. Um companheiro da direção da LIT viajou até o Maranhão para fazermos uma discussão sobre a conjuntura internacional, e um companheiro da direção do PSTU discutiu com a gente a questão nacional. Depois continuamos mantendo o processo de unidade nas lutas, e continuamos discutindo, inclusive textos do pré-Congresso do partido. E aí em uma segunda etapa discutimos a questão da organização, concepção de partido, e a partir desse segundo seminário, nos reunimos e deliberamos nossa entrada coletiva no partido como grupo, já que vínhamos discutindo como grupo. E isso abre um processo importante no estado, que são companheiros lutadores importantes no estado do Maranhão que vão entrar no PSTU e algumas outras pessoas que nem eram do partido nem do CAC mas que também se aproximaram, porque viam que eram o único partido de esquerda no estado. Então é um processo contínuo. Vamos ter nosso ato de filiação no próximo dia 22 de setembro, o companheiro Zé Maria vai estar presente. Vamos ter uma plenária conjunta onde concordamos também em aprovar uma direção paritária do partido, nucleando as pessoas.


E quais foram os principais pontos decisivos para a entrada de vocês no PSTU?

No Maranhão nós já tínhamos uma proximidade com o PSTU nas lutas, mesmo quando estávamos no PSOL, principalmente através da CSP-Conlutas. Algumas questões que tínhamos discordância nós fizemos o debate, sabemos que é uma experiência nova, tanto para quem está entrando como para os companheiros que já estavam no PSTU. Mas eu acho que foi um processo de diálogo e debate muito importante, tanto do ponto de vista teórico, ideológico, como de concepção de partido. Tínhamos já muitos acordos, o que facilitou isso, e os seminários também serviram inclusive para melhorar o diálogo.


E como se deu a discussão em termos de organização?

Nós vínhamos de tradições diferentes, alguns do PT, outros do PSOL mesmo, sabemos que o PT e PSOL, como organização, aceitam as tendências e as frações permanentes. Esse foi um ponto que a gente colocou bastante no debate. Também debatemos a importância do centralismo democrático. Nós sabemos que a existência de frações e tendências o tempo todo dentro do partido foi um processo que acabou com o PT e que transformou o PSOL no que é hoje. Vira mais uma disputa de tendência pela hegemonia do partido, que priorizava mais a discussão interna pra ver quais as tendências que tinham mais poder interno e abandonou a luta. Foi importante esse diálogo para ver como funciona o PSTU. Outra questão é o nucleamento. A gente sabe que no PSOL também tinha os núcloes, mas que era algo muito frouxo, não tinha a organicidade que a gente vê no PSTU. É diferente, a pessoa entra e já organicamente tem que participar de um núcleo, é um processo importante de fortalecimento que a gente não tinha realmente no PSOL. Então, as dúvidas foram tiradas, tivemos dois dias de debates profundo sobre isso e as pessoas se convenceram na entrada no partido.


Quando vocês estavam no PSOL, já tinham essa preocupação em relação às tendências, ou foi algo que vocês foram percebendo com a dinâmica desse partido?

Nós tínhamos uma preocupação com as tendências que vieram do PT, sabíamos que poderia ser da mesma forma com o PSOL. Não tínhamos uma visão de que essas correntes iriam transformar o PSOL no que foi transformado. Seria mais um processo de debates, mas acabou acontecendo a mesma coisa. Então foi mais uma experiência para demonstrar a dificuldade de um partido com tendências e frações permanentes. A gente sabe que no PSTU, durante o período congressual há a liberdade de se atuar em tendências, mas que ao final do congresso todos tem que seguir a definição votada pela maioria. Isso não acontecia no PSOL. A presidente do partido, após uma votação do partido, tomava outra decisão. Então, a gente viu que isso não avançou e não fez crescer o PSOL como uma alternativa revolucionária, uma alternativa socialista para esse país.


E por que você acha que isso aconteceu com o PSOL?

Isso aconteceu porque o PSOL veio com os erros cometidos pelo PT e os aprofundou ainda mais. O partido buscou privilegiar a via institucional. Os congressos do PSOL quase que nunca chegavam ao final, tal era a disputa de tendência em quem ia comandar o partido. Abandonou as lutas reais, as lutas sociais, que inclusive está proposto em seus estatutos, em seu programa. Com isso, essa institucionalização, essa burocratização do partido e essa via apenas eleitoral, foram os fatores que acabaram hoje fazendo com que o partido fosse cada vez mais definhando. Com um processo de inchaço, sem qualquer critério para filiação, isso vem ocorrendo em nível nacional.


Qual a importância que você vê na construção de um partido revolucionário, principalmente no Maranhão que é governado por uma oligarquia extremamente reacionária?

O problema lá é que alguns partidos que se dizem de esquerda aproveitam parte dessa oligarquia. Mas é um estado em que se poderia ter um partido realmente de esquerda, com influência de massas. A proposta inclusive do PSTU no Maranhão é fortalecer o partido não só na capital, mas também nos municípios. É uma realidade muito difícil, com uma população extremamente pobre, com os piores indicadores tanto em Educação como em Saúde. É um estado realmente em que não é fácil fazer a luta, vivemos uma realidade em que o capital está vindo com muita força, chegando para expulsar os trabalhadores. Algumas empresas estão chegando, como as de Eike Batista que vem explorar o petróleo, o gás, minérios, e com isso tenta expulsar os trabalhadores das terras, as comunidades quilombolas, os indígenas, ribeirinhos. O agronegócio também está vindo com muita força. Em algumas regiões só há eucaliptos, a Suzano chegou e pegou grande área do estado para plantar eucaliptos. A especulação imobiliária também está expulsando o pessoal da área urbana. Então hoje temos várias lutas e é importantíssima a intervenção de um partido político que esteja inserido nessas lutas. Não que vá interferir na linha do movimento, mas que é importante se inserir inclusive para dirigir nesses momentos de embate contra o capital.


Um processo de fusão como esse ocorre não só por acordos políticos e estratégicos, mas também através de uma relação de confiança entre os militantes, como isso ocorreu?

Exatamente. Foi um processo bem transparente, nos debates colocamos posições inclusive divergentes. Esses momentos serviram para mostrar a sinceridade nos debates, todos colocaram sua posição e todos amadureceram muito politicamente. Esse processo foi muito importante inclusive para a decisão da entrada no PSTU. No início nem todos queriam militar nesse momento em outro partido, mas foi o amadurecimento do debate que convenceu esses companheiros. E abre um processo importante de discussão com alguns companheiros que podem entrar futuramente.


Qual é a sua expectativa no PSTU?

Temos uma expectativa muito boa, sabemos que nesse primeiro momento vamos estar vivenciando e conhecendo o partido. É uma etapa importante, que a gente precisa manter sempre o diálogo. E a nossa perspectiva é que o partido cresça, se torne uma referência importante de esquerda no Estado, já é inclusive uma referência, mas que se fortaleça, porque hoje no Maranhão só temos o PSTU como partido de esquerda. O PSOL passa por esse processo cada vez mais de direitização e o único partido que pode cumprir esse papel de esquerda no estado realmente é o PSTU, porque precisamos de um enfrentamento muito grande com o capital lá.


  • Coletivo Ação Comunista (CAC) ingressa no PSTU


  • Retirado do Site do PSTU

    O inimigo do meu inimigo nem sempre é meu amigo

    O imperialismo norte americano já teve motivos de sobra para aprender que não é sempre que “armar o inimigo do meu inimigo” funciona. Quando treinou e deu armamento para a Al-Qaeda e outros grupos islâmicos enfrentarem as tropas da União Soviética, viu depois esses mesmos guerrilheiros levaram o Talibã ao poder no Afeganistão. Depois, este país virou alvo, pois o regime teria garantido um refúgio seguro para Osama bin Laden, que também combateu os soviéticos.

    Os serviços de inteligência dos Estados Unidos e Grã Bretanha trabalharam em estreita ligação com a polícia política Líbia. O seu principal chefe, Moussa Koussa, hoje desfruta de confortável exílio na Inglaterra, de onde denuncia o envolvimento de rebeldes “ligados à Al-Queda”.

    Fontes internacionais islâmicas afirmam que combatentes da Al-Qaeda e do Hezbollah estavam diretamente envolvidos no conflito, lutando ao lado de rebeldes contra Kadafi. De fato, havia praticamente um consenso entre as organizações fundamentalistas islâmicas sobre a necessidade de ajudar os rebeldes contra Kadafi.


    COMBATENTES

    Cidades como Dernah e Benghazi estão cheias de adeptos de causas islâmicas. Dernah em particular, foi a cidade de onde saíram muitos muhaijins para lutar no Afeganistão e no Iraque contra as tropas norte-americanas.

    O Centro Francês de Pesquisa de Inteligência relata que 19% dos estrangeiros que foram lutar no Iraque contra os EUA eram líbios. O maior contingente depois dos sauditas. Entre estes combatentes islâmicos libios encontraremos Abu Faraj al-Libi, preso pelo Serviço de Inteligência do Paquistão em 2005, em uma operação com a CIA, hoje sob custódia militar na Baia de Guantánamo; Anas al-Liby, que, em fevereiro de 2007, foi citado pela Human Rights Watch como estando em uma prisão secreta da CIA; e Abu Yahya al-Libi, que teve detenção extrajudicial na Base de Bagram, no Paquistão, de onde fugiu em julho de 2005.

    Em combate na Líbia estão, pelo menos, Abdel Hakim Al-Hasidi, hoje Comandante em Dernah, preso no Afeganistão em 2002 e entregue a autoridades líbias. E Abdelhakim Belhadj, que comandou o ataque a Trípoli e é o atual comandante do Conselho Militar da cidade, nomeado pelos cinco batalhões da Brigada de Trípoli, e não por autoridades civis. Ele acusa a CIA de torturá-lo em prisões secretas mantidas pelo governo americano na Malásia e Tailândia, antes de ser enviado, como presente, ao ditador Kadafi, para ser torturado nas prisões da Líbia.

    O Grupo Combatente Islâmico foi um elemento chave das forças rebeldes da Líbia, por sua experiência em combate no Iraque. Agora rebatizado Movimento Islâmico Líbio (LIM), afirma ter renunciado ao terrorismo. Um de seus líderes, Ali Sallabi, anunciou que "o nosso diálogo articulou-se e vai articular-se sempre em torno de três pontos: a destituição de Kadafi e dos seus filhos e a sua saída da Líbia, preservar a capital das destruições e terminar com o derramamento de sangue entre líbios". Ele assegurou ainda ser favorável a "um Estado democrático para os líbios", com partidos políticos e alternância de poder. "Mantemos fortes relações com os laicos. Estamos na mesma trincheira", concluiu.


    KADAFI COOPERAVA COM O IMPERIALISMO

    Um dos motivos que levaram os combatentes islâmicos a se uniram a revolução Líbia foi a estreita cooperação de Kadafi com o imperialismo para persegui-los. Havia um trabalho permamente entre a Inteligência Líbia, chefiadas por Koussa, e CIA, MI-5 e MI-6. Inclusive com o regime de Kadafi cedendo líbios para se infiltrar em organizações islâmicas no Reino Unido.

    Documentos achados na sede de órgão de segurança em Trípoli demonstram que a CIA enviou suspeitos de terrorismo para serem interrogados na Líbia, país famoso pelas suas torturas.


    E COM ISRAEL

    Há informes também de que o serviço secreto israelense, a Mossad, utilizou a Líbia como uma base de operações para a África. Em troca, autoridades israelenses teriam aprovado que agências sionistas de segurança permitissem a seus mercenários serem contratados pelo regime de Kadafi para lutar na Líbia contra os rebeldes. Pois Israel temia que, com a derrubada de Kadafi, ele pudesse ser substituído por um "regime extremista islâmico".

    Israel denuncia que palestinos em Gaza estão adquirindo artilharia antiaérea e antitanque a partir de combatentes da Líbia. Afirmam que o Hamas e outras facções palestinas têm recebido armamento de origem líbia e que há um fluxo de mísseis antiaéreos SA-7 e granadas propelidas por foguetes (RPGs), vindas por uma rota de abastecimento, aberta entre o leste da Líbia e a Faixa de Gaza através do Egito, da península do Sinai, ou através do Sudão.


    MAIS DIFICULDADES AO GOVERNO PRÓ-IMPERIALISTA DO CNT

    Estas informações devem bastar para deixar claro que estas organizações islâmicas não lutariam do lado de rebeldes que apoiassem uma intervenção imperialista. Além do que, tendo conquistado posições e estando entre os "vencedores" da guerra, não estarão interessados em abrir mão do controle só para agradar os caprichos da Otan.
    Novos problemas para o governo pró imperialista da CNT.

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  • Inglaterra e kadafi: ligações perigosas


  • Retirado do Site do PSTU

    PT: O grande partido social democrata brasileiro?

    Resenha de História do PT 1978-2010, de Lincoln Secco (Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2011)


    O livro História do PT, de Lincoln Secco, é uma bem vinda contribuição não só para a historiografia contemporânea brasileira, mas para toda a reflexão política sobre o significado do mais importante partido brasileiro nas últimas três décadas .

    Um bom historiador é como um cineasta, ele precisa contar uma história no seu desenvolvimento, não basta uma fotografia de um momento, mas é preciso ver os personagens e o cenário no seu dinamismo. Nisso Lincoln Secco se revela um excelente e ágil narrador, incorporando a um retrospecto minucioso de todos os encontros, congressos, eleições internas e participação nas eleições nacionais, uma série de depoimentos com grande riqueza e amplitude, construindo a história do partido num quadro mais geral da história do país. Um problema, entretanto, é o pouco peso dado ao desfecho. O segundo governo Lula é pouco analisado. E a interpretação teórica sobre o sentido histórico do PT também permanece, a meu ver, inconclusa.

    Outra virtude do texto, além do estilo elegante, é sua concisão. Optar por uma obra sintética, entretanto, tem sempre o preço de ter de sacrificar o tratamento mais exaustivo. Mais à frente mencionarei as lacunas assim como alguns erros que considero ter o livro.

    Seu maior mérito, contudo, é certamente sair de uma historiografia puramente descritiva e avançar considerações de análise teórica política e sociológica. Nesse sentido, há uma tese forte de fundo que consiste na afirmação de que o PT cumpriu no Brasil de forma concentrada todas as três fases que caracterizaram os partidos social-democratas na Europa: uma primeira apoiada nas lutas operárias, com forte conteúdo ideológico socialista e de oposição extra-parlamentar privilegiando a ação direta, especialmente a grevista. Essa fase foi da fundação em 1980 até 1989.


    Uma segunda fase é a da consolidação como partido institucional, sendo a principal força de oposição dentro do parlamento e com grande peso de deputados e de profissionais políticos. Ela ocorre durante uma década de fraca mobilização social, durante os dois governos FHC, entre 1990 e 2002.

    A terceira é da ascensão ao poder, indo de 2002 até hoje, com a descaracterização do ideário socialista fundador em prol de um pragmatismo que leva a alianças com velhos adversários e a adoção de métodos de corrupção, além de uma política eleitoralmente bem sucedida de assistência social junto com uma aliança estratégica com o setor financeiro e o agronegócio.

    Secco identifica essa transformação até mesmo pela quantificação das referências ao socialismo nos documentos oficiais dos encontros petistas (que vão de 126 no I congresso em 1991 à apenas uma no IV Congresso de 2010). Muito mais importante do que os documentos, no entanto são os atos. E o livro não cede à tentação mais comum em muitos outros ensaios históricos sobre o PT que é uma tendência hagiográfica. Os atos da primeira fase são muito distintos dos da última e Secco não deixa de exercer o olhar crítico sobre as mudanças e metamorfoses petistas, mas a fase do PT no governo é menos analisada e a sua interpretação é mais hesitante.

    Secco é taxativo ao afirmar que Lula “ficou tão aquém de suas tarefas históricas” (p.202), porque a “esquerda ganhou parte do poder, mas perdeu a hegemonia para os ideólogos dos mercados financeiros” (p.202) embora considere também ter havido “uma transferência de renda para os muito pobres através de programas sociais” (p.206).

    Assim o lulismo é definido como uma “contraditória aliança de classes conquistada pelos valores da estabilidade social e monetária simultaneamente” (p.243). Essa aliança entre “agronegócio, rentistas, trabalhadores urbanos e rurais e os muito pobres (...) dependeu da arrecadação e da arbitragem da disputa pelo orçamento público” (p.244).

    O que, entretanto, o historiador não responde é: quem mais ganhou nessa disputa? Se o PT é produto de uma “fase de mudança estrutural de um ciclo sistêmico de acumulação para outro numa etapa de esgotamento do modelo brasileiro de substituição de importações”, qual foi o seu papel real na articulação das formas de renda do capital e o Estado brasileiro na época do maior rentismo financeiro da história?

    Embora bastante quantificador de dados, Secco não levou em conta os dados econômicos que mostram a magnitude da transferência de renda do Estado brasileiro para o setor financeiro na época dos governos do PT, maiores do que na época dos governos PSDB/PFL, para poder calcular o peso da balança nessa aliança abstrata entre setores contraditórios e quais os beneficiários dessa equação.

    Parece haver uma hesitação do historiador em levar às suas últimas conseqüências os dados de sua própria análise. Daí uma aparente incerteza quanto à inclusão do PT na categoria de partido “social-democrata”: “o PT é diferente da social democracia clássica na origem e nos fins” (p.257). Mesmo que historicamente o PT não tivesse ingressado formalmente na social-democracia, chegando mesmo em sua formação inicial a repudiá-la, sua trajetória repete as fases históricas dos partidos socialistas europeus. Na fase final, o seu “aburguesamento inexorável” também pode ser identificado no PT. Mesmo que se destaque diferenças com a social-democracia européia, o PT também “se tornou finalmente um partido de governo e sobrepôs à sua identidade socialista e nacionalista uma tendência tecnocrata eivada dos vícios da política tradicional brasileira” (p.259). A ironia brasileira é que o grande partido social-democrata no país não foi o que levou essa sigla ao próprio nome (o PSDB), mas o PT, que continuou, no essencial, o mesmo programa econômico dos governos FHC, o que Secco reconhece, mesmo que de forma atenuada, ao escrever que “Lula não rompeu totalmente com a política econômica de FHC” (p.205). No Brasil, “as tarefas históricas da burguesia (reforma agrária, democracia, educação pública etc.) foram relegadas e caíram no colo do PT tornando-se exigências socialistas como bem notava Florestan Fernandes.” (p.260). A questão que Secco não conclui é que essas tarefas que “lhe caíram ao colo” não foram ainda cumpridas!

    O mal chamado “aggiornamento” petista, ou nas palavras de Gramsci o seu “transformismo” foi consagrado com a Carta aos Brasileiros de junho de 2002. Neste processo de “transformismo” o PT aceitou como que um pacto fáustico e, em troca da chegada e manutenção do poder, vendeu a alma ao demônio do grande capital e das velhas oligarquias tradicionais. Processo idêntico, na sua essência, ao cumprido pelos partidos socialistas europeus desde o início do século XX (a política atual do PSOE na Espanha e do PASOK na Grécia, além da participação dos partidos das ex-ditaduras governantes no Egito e na Tunísia na social democracia internacional são a expressão mais atual desse fenômeno) que levaram, entretanto, muito mais tempo para essa evolução. A Carta aos Brasileiros foi assim mais uma Carta aos banqueiros assinalando a guinada histórica do PT. Um partido que nunca tivera o marxismo como teoria não precisou como a social-democracia alemã de um congresso de Bad Godsberg para renegá-lo.

    Essa objetividade na análise, mas certa recusa em tirar as lições, parece contaminar o texto de Secco com uma condescendência com o PT que o leva a fazer afirmações categóricas como de que o escândalo do “mensalão” “não se tratou da corrupção tradicional da política brasileira, salvo casos isolados como um dirigente que recebeu um automóvel usado de um empresário” (p.227), ou de que no PT não houve enriquecimento pessoal de lideranças partidárias (p.106), ou ainda de que na eleição de 2002, 80,4% dos deputados petistas tinham baixo patrimônio (p.248). Fazer estas afirmações e ao mesmo tempo não mencionar casos como os de Antonio Palocci, de José Dirceu, de Luís Gushiken cujos patrimônios cresceram com “consultorias” empresariais é pouco rigoroso.

    Mesmo identificando o declínio da militância do PT substituída por profissionais e a burocratização a serviço dos parlamentares e do governo, o autor parece continuar a ver um setor resistente no interior do partido ao seu próprio curso histórico como um puro wishful thinking: “no período em que a sombra da corrupção abateu-se sobre o partido muita gente resgatou a referência socialista” (p.250). Quem são esses socialistas resistentes não fica claro, pois mesmo quando no passado a esquerda do partido obteve maioria na comissão executiva quem continuou decidindo a linha foi Lula e os parlamentares e ocupantes de cargos executivos independentemente da direção partidária.

    Essa pouca disposição em analisar mais a fundo o caráter social da burocratização e aburguesamento do PT não permite que Lincoln Secco dialogue com os críticos de esquerda do PT, tais como Francisco de Oliveira, que com a metáfora do Ornitorrinco analisa esse híbrido em que se constitui a formação social brasileira emblematizada pela aliança entre sindicalistas ocupantes de postos de gestão financeira de fundos de pensão e banqueiros, numa visão muito menos edulcorada do petismo do que Lincoln. A única referência a Francisco de Oliveira é indireta e para dizer que o PT se insere em uma tradição marxista “neo-desenvolvimentista” de 1954-1964 da qual o PCB foi o elemento central (p.69). A ideia de que o governo Lula aplicou de alguma forma uma opção pelo neo-desenvolvimentismo é ainda mais esdrúxula dado o predomínio de uma política de juros altos e de um Banco Central quase independente e nas mãos do setor financeiro. A própria designação de social-democracia para o PT é imprópria, cabendo melhor social-liberalismo, como foi desenvolvido por outros autores .

    O livro consegue, em geral, resumir bem a história da luta interna no PT e de seus alinhamentos de tendências, mostrando como surgiu a “articulação dos 113” como tendência majoritária em torno de Lula, embora o seu papel pessoal não seja analisado a fundo. A crise das derrotas no primeiro turno nas campanhas presidenciais de 1994 e 1998, esta última em aliança com Brizola, e a emergência da “articulação de esquerda” e de outras correntes mais à direita são relatadas, mas a natureza da relação ambígua de Lula e do seu grupo de confiança direta agindo acima do partido não é esmiuçada. O próprio fenômeno da caracterização de um crescente “lulismo” acima do petismo, especialmente no período mais recente, também não é destacado.

    A perspectiva mais contemporânea do texto leva muito pouco em conta a existência de setores à esquerda do PT, todos provenientes do próprio PT, tais como o PSOL e PSTU, e arrisca até previsões sobre a conjuntura presente ao falar da convergência política das atuais centrais sindicais no apoio ao governo que “ficou para trás o tempo do novo sindicalismo” (p.247) desprezando assim as articulações sindicais combativas que vem se expressando na Conlutas e na Intersindical.

    A tese de que na origem do PT a extrema-esquerda só teve peso onde “era ínfima a movimentação social” (p.51) é insustentável não só em relação ao RGS a que o trecho se refere como também a São Paulo. Sequer fica clara a importância decisiva da CS (Convergência Socialista) na defesa da formação do PT no Congresso metalúrgico de Lins, em janeiro de 1979, onde José Maria de Almeida, de Santo André, foi o defensor dessa proposta. As três organizações trotskistas (DS, CS, OSI) foram importantes e isso é avaliado pelo próprio autor mais a frente em que afirma que “em muitas cidades o partido só pôde aparecer devido à extrema-esquerda” (p.56). Quando trata da “proletarização forçada” de militantes provenientes do meio estudantil, no entanto, o uso da adjetivação “forçada” é incompreensível. Ninguém era forçado a uma tarefa dessas!

    Também fica margem de equívoco quando escreve: “As iniciativas pela derrubada efetiva do presidente ou pela cassação do registro do PT ficaram restritas a políticos isolados ou grupos marginais, como o PSTU e PSOL que ensaiaram passeatas contra o PT.” (p.228) O PSTU e PSOL jamais fizeram qualquer iniciativa pela “cassação do registro do PT” como pode depreender-se desse parágrafo.

    Outra impropriedade é chamar esses grupos de “marginais”. Seis milhões meio de votos (6,85% dos válidos) em Heloísa Helena em 2006 ou mesmo algumas das maiores votações parlamentares em São Paulo e Rio de Janeiro em 2010, além do peso social e sindical não fazem desses partidos forças apenas “marginais” na política brasileira.

    Vários outros aspectos interessantes são analisados no livro. Um deles é o contraste do PT com o PCB como os dois maiores partidos da classe operária que já existiram no Brasil em distintos momentos, mostrando como o partido comunista foi de uma estrutura de militância, de imprensa e editorial proporcionalmente maior que a do PT. Apesar de muita retórica sobre o papel dos núcleos, o que prevaleceu no PT foi uma estrutura eleitoral e sua natureza de massas se deveu à influência eleitoral muito mais do que a de uma militância orgânica.

    Lincoln Secco termina sua História do PT afirmando que o contexto internacional de uma nova fase no ciclo de acumulação capitalista coincidindo com uma década de recuo nos movimentos sociais e na influência ideológica do socialismo após o colapso da URSS levou a que o PT combinasse “vitória política com impotência social”. Isso não corroeu o apoio eleitoral porque “Lula apareceu como o único governante que estendeu o pagamento de benefícios sociais” (p.233) levando ao realinhamento eleitoral de 2006 observado por André Singer em que os setores mais pobres do eleitorado se inclinaram para o PT, apesar da perda de apoio em setores médios e de maior nível educacional.

    A história do PT é um assunto em curso. Seu desfecho, desdobramento e conseqüências ainda estão em aberto. É difícil num tema cuja ação ainda flui tirar conclusões totalmente acabadas, mas deixar de fazê-lo também é inaceitável. Lincoln Secco percorreu esse duro dilema com êxito, produzindo uma obra que certamente já é referência indispensável para os que se interessam pelo PT, que obviamente não são apenas os estudiosos, mas toda a sociedade brasileira e mundial, e que traz, além do texto, uma cronologia, um glossário, um historiograma das principais tendências e outros apêndices úteis como instrumentos de pesquisa.


    Retirado do Site do PSTU

    sexta-feira, 16 de setembro de 2011

    Ministro do Turismo é o quinto a cair no governo Dilma

    Ministro pagava empregada doméstica e chofer com recursos públicos


    Nem bem completou nove meses de governo, Dilma já contabiliza cinco ex-ministros. Agora foi a vez do ministro do Turismo, o deputado Pedro Novais (PMDB-MA) pedir as contas. O ministro nomeado pela presidente em janeiro entregou sua carta de demissão nesse dia 14 de setembro. Apadrinhado político do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), o ministro fazia parte da cota do PMDB no governo.

    Novais já convivia com o desgaste de denúncias de corrupção no ministério, principalmente após a Operação Voucher da Polícia Federal, que prendeu dezenas de funcionários, entre eles o secretário Executivo, Frederico da Costa. Utilizando a tese do ‘eu não sabia’, e que o esquema de desvio e superfaturamento ocorriam bem antes de sua nomeação, Novais permanecia no cargo.

    O ministro só caiu quando a imprensa tornou público que a sua empregada doméstica em Brasília era paga com dinheiro público e que um motorista da Câmara servia como chofer para a sua esposa fazer compras. O ministro pagou a doméstica com recursos de sua verba de gabinete de 2003 a 2010, período no qual a funcionária ficou registrada como “secretária parlamentar” da Câmara. Já o motorista, apesar de oficialmente constar no quadro de funcionários da Câmara, permanecia 24 horas à disposição da esposa do ministro.

    O desgaste foi tão grande que o ministro perdeu apoio até de seu partido. Até mesmo o presidente do PMDB, senador Valdir Raupp, pediu sua saída. “Para Novais, só tem duas opções: ou sair por vontade própria, ou ser saído”, chegou a declarar à imprensa. O pedido de demissão veio num telegrama curto e direto enviado ao Planalto, e aceito prontamente.


    Escândalos

    A demissão foi o ápice da série de escândalos que abalou o ministério e causou a prisão de 38 funcionários do órgão. O esquema funcionava através de fraudes em emendas parlamentares no Orçamento e convênios firmados entre o ministério e ONG’s. Entre os presos estavam o ex-deputado federal pelo PMDB, Colbert Martins da Silva Filho.

    Apesar de chamuscado pelas denúncias, Novais se equilibrava no cargo com a anuência de Dilma. Até as últimas revelações.

    Assim como ocorreu nos casos anteriores, a troca do ministro deve alterar pouca coisa, já que o novo escolhido é também apadrinhado de Sarney. Após horas de indefinição na escolha do novo nome, chegando o PMDB até a anunciar que colocava à disposição os nomes dos 80 deputados do partido para Dilma decidir quem iria (e assim assumir a responsabilidade pela nomeação), chegou-se ao consenso. O novo ministro é o deputado Gastão Vieira (PMDB-MA), parlamentar desde 1995 e ex-secretário de Educação no governo de Roseana Sarney.


    Farsa da ‘faxina’

    A queda do quinto ministro do governo Dilma confirma a farsa da “faxina” do governo. Dilma já sabia muito bem quem era Pedro Novais quando, em janeiro último, o nomeou para a pasta do Turismo. No mês anterior, o então deputado se viu alvo de um escândalo por ter pagado uma conta de pouco mais de R$ 2 mil de um motel com verbas de gabinete. O deputado deu uma “festinha” a amigos estabelecimento. Diante da repercussão negativa, ele devolveu o dinheiro, mas permaneceu impune e ainda foi promovido a ministro.

    E agora, ao que tudo indica, Novais cedeu seu lugar ao colega de partido para retornar tranqüilamente à Câmara, ficando mais uma vez impune pelas irregularidades já mais do que provadas. Nessa história, a única faxina de verdade é a que a empregada doméstica fazia no apartamento do ex-ministro, paga com dinheiro público.


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  • Nota do PSTU: Ministério do Turismo: mais um caso de corrupção no governo Dilma


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    quinta-feira, 15 de setembro de 2011

    Trabalhadores dos Correios aprovam greve em todo o país

    Greve por tempo indeterminado! Essa foi a resposta que os trabalhadores dos Correios deram à direção da empresa na noite desta terça-feira (13), em assembléias realizadas por todo país. A categoria deixou explicito que não aceitará a proposta rebaixada da ECT (Empresa de Correios e Telégrafos) de apenas R$ 800 de abono sem aumento real.

    Dos 35 sindicatos filiados à Fentect (Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios), 34 já informaram que estão em greve. As assembléias expressaram a disposição de luta. Em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, havia mais de 6 mil trabalhadores decididos pela greve.


    Trabalhadores dos Correios de Pernambuco aprovam greve

    Para um dos representantes da FNTC (Frente Nacional dos Trabalhadores dos Correios), que faz oposição à Fentect, Geraldo Rodrigues, o Geraldinho, a empresa, após 50 dias de enrolação, acreditou que propondo um abono de R$ 800, a ser pago na sexta-feira próxima, dia 16/09, iria desmobilizar os trabalhadores e evitaria a paralisação. “A ECT quebrou a cara, a categoria não só repudiou a proposta da empresa como demonstrou nas assembléias que não vai aceitar proposta rebaixada”, enfatizou Rodrigues.

    Segundo o membro da FNTC, os sindicatos governistas ligados à CUT e à CTB, pressionados pela a categoria, tiverem de dar um “giro à esquerda” e radicalizar. “Sabemos que vão tentar acabar com a greve o mais rápido possível. Os sindicatos da FNTC foram os primeiros a decretar a greve e rejeitar a proposta rebaixada da empresa e seguiremos com esta postura até que nossas reivindicações sejam atendidas”, finalizou.



    Outra reivindicação que a FNTC luta para que seja um dos eixos da greve é o veto de Dilma à MP 532, aprovado pelo Congresso, que abre o capital da estatal e inicia, na prática, a privatização da empresa.

    A empresa até o momento não apresentou nova proposta para a categoria. Nesta quarta-feira (14) acontece nova assembleia nacional para dar encaminhamentos à greve.


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  • Trabalhadores dos Correios em Pernambuco cruzam os braços

  • Editorial: Você concorda com a privatização dos Correios?

  • Alta nos alimentos faz inflação disparar


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    terça-feira, 13 de setembro de 2011

    Garoto haitiano conta que foi estuprado por militares uruguaios

    Após divulgação do vídeo, jornal uruguaio El País publicou um relato detalhado, que revela a verdadeira face da ocupação. “Dois deles me seguraram e dois deles me estupraram”, revela Johnny. Relatório militar aponta apenas “má conduta” e manobras da ONU tentam garantir impunidade dos militares


    Na sexta-feira, 2 de setembro, começou a circular pela internet um vídeo que, apesar de ser de um horror indescritível, talvez seja a imagem mais representativa do real significado da ocupação do Haiti pelas tropas das Minustah, vergonhosamente lideradas pelo Brasil.

    São 45 dolorosos segundos, registrados por um celular, no final do mês de julho, nos quais gritos de desespero e gargalhadas de cinismo competem com imagens ainda mais grotescas que registram o momento em que um jovem (de 18 anos, segundo a imprensa mundial), é humilhado e estuprado, no interior de uma base das Organizações das Nações Unidas (ONU), por um grupo de soldados uruguaios.



    Repugnantes e indigestas até mesmo para aqueles “acostumados” com as cenas de barbárie e violência que infestam as chamadas redes sociais, as imagens e a repercussão do episódio (que, não por acaso, têm sido pouco divulgadas ou minimizadas pela imprensa brasileira) mais uma vez chamaram a atenção para a ocupação do país mais pobre do Ocidente.

    Uma ocupação que, sob o hipócrita manto de “caráter humanitário”, só tem significado mais sofrimento, violência e exploração para o povo haitiano. Tudo isto levado a cabo sob o comando do governo brasileiro e, como neste caso de estupro, cercado pela impunidade garantida pela ONU e pelos governantes dos países que compõem a chamada Missão da ONU pela Estabilização do Haiti (Minustah)


    Cenas de horror

    Apesar das tentativas de amenizar o episódio e das “justificativas” emitidas tanto pela Minustah quanto pelo governo uruguaio, as imagens não deixam dúvidas: o jovem Johnny Jean foi brutalmente violentado no interior da base de Port-Salut, no sul do país, por quatro militares uruguaios.

    Se restassem dúvidas, no dia 7 de setembro, o jornal uruguaio El País, publicou um relato detalhado, obtido pelo Escritório Nacional de Defesa dos Direitos Humanos, uma ONG sediada no Haiti que entrevistou o garoto, sua mãe e seu padrasto e, ainda, cita, nominalmente, os militares envolvidos.

    De acordo com o relato, o jovem que vive nas redondezas da base, estava voltando de um jogo de futebol (organizado pelo próprio batalhão uruguaio) quando foi levado à força por um dos militares para o interior da base. Lá, pelo menos dois dos marinheiros violentaram o rapaz.

    Exatamente em função do ambiente repressivo, Johnny só recebeu atendimento médico em 30 de agosto, um mês após o estupro, quando os médicos do Hospital Comunitário de Referência de Port-Salut, registraram “lacerações na região anal” e recomendaram exames para a possível transmissão de doenças venéreas.

    Também, só com o vazamento do vídeo, Johnny veio a público, acompanhando de sua mãe Rose Marie Jean, para contar sua história nas rádios locais. No dia 6, em entrevista à rádio Les Cayes ele contou que quatro soldados realizaram o crime: "Dois deles me seguraram e dois deles me estupraram. Eles me bateram inúmeras vezes" (...) "Depois disso, os soldados tentaram negociar com minha mãe para cobrir o caso, mas ela não quis e avisou as autoridades".


    Estupro contra a verdade

    Apesar dos depoimentos e das imagens inquestionáveis, o “desconforto” provocado pelo episódio originou uma verdadeira onda de hipocrisia, alimentada por todos os envolvidos na ocupação. A começar pelo governo Dilma, que está se ocultando atrás de um silêncio covarde, passando pelo governo uruguaio e chegando, evidentemente, à própria ONU.

    Neste sentido, a posição do governo uruguaio é particularmente asquerosa. Antes de mais nada, cabe lembrar que o país, hoje, compartilha com o Brasil não só a ocupação do Haiti, mas também o fato de ter a sua frente um ex-esquerdista, José Mujica, que presidi o país apoiado nos mesmos setores da burguesia que combateu no passado.

    É esta opção que faz com que o Uruguai, por exemplo, mantenha um das maiores tropas no Haiti Ocupado. São cerca de 1.2000 soldados, a maioria da elite da Marinha e da Aeronáutica.

    Fiel, também, ao estilo de governos como os de Dilma, Evo Morales e Chaves, depois de sair a público vociferando contra o “absurdo” e prometendo a punição exemplar dos envolvidos, Mujica está tomando providências para “abafar” o caso e manter as coisas exatamente como estão, através de uma manobra que só pode ser considerada como um novo “estupro”, desta vez contra a verdade.

    Segundo o jornal uruguaio “El Observador”, o relatório das Forças Armadas, que foi divulgado no Congresso do país, no dia 8 de setembro, descarta que houve qualquer tipo de infração por parte dos militares e concluiu que, "usando a análise do vídeo como evidência, é descartada a possibilidade de intenção de abuso sexual". Além disso, segundo o texto, “o acontecimento não envolveu atos sexuais nem aberrantes" e, ainda, "os marinheiros são responsáveis, apenas, por atos de má conduta".

    Se isto não bastasse, como é lamentavelmente comum na maioria dos casos de estupro, o relatório ainda tenta jogar a “culpa” sobre a vítima. Apoiando-se nos depoimentos dos canalhas agressores, o texto alega que os militares foram “obrigados” da “dar uma lição” ao jovem haitiano em função da "linguagem ofensiva que o cidadão local usou contra suas famílias".

    E como não há limites para a hipocrisia, o relatório ainda afirma que só "houve uso da força física com o único propósito de fazer uma piada". Uma afirmação tão asquerosa quanto a do presidente Mujica que, em entrevista para o jornal “El Páis”, no dia 7 de setembro, para minimizar os fatos, se utilizou de um argumento digno dos ditadores contra os quais ele lutou no passado: “desde que o mundo e mundo, este tipo de coisas existem (...) entre os soldados, sempre há uma banda indisciplinada, é inevitável”.


    Hipocrisia sem limites

    O relatório, evidentemente, é parte das muitas manobras que estão sendo orquestradas para livrarem os militares, o governo uruguaio e a própria ONU, de qualquer responsabilidade pelo crime.

    Assim que o vídeo veio a público, o governo de Mujica, por exemplo, declarou-se “envergonhado”, afastou o chefe das tropas uruguaias no Haiti e “exigiu” a imediata repatriação dos agressores, algo que foi apresentado como uma demonstração de “mão firme” do governo, mas que, na verdade, não passa de uma tentativa de livrar a cara dos militares.

    A ONU impõe que todos os “capacetes azuis” sejam protegidos por uma norma que determina que todo ato criminoso praticado pelas “missões de paz” sejam julgados pelos tribunais de seus respectivos países. Ou seja, eles têm que ser “obrigatoriamente” repatriados. E a ONU, certamente, já conta com o tipo de tratamento que será dado para seus criminosos, uma vez que retornem para seus países de origem, como fica evidente no relatório-fraude do governo uruguaio.

    Por isso mesmo, não causa espanto que a porta-voz da Missão da ONU, no Haiti, Eliana Nabaa também tenha colocado a veracidade dos fatos em dúvida, declarado que a entidade tem “tolerância zero” em relação a abusos sexuais e, ainda por cima, se lamentado principalmente porque o episódio “pode impactar centenas, milhares de pessoas que têm feito um trabalho maravilhoso aqui". Ou seja, ela também está mais preocupada com o efeito sobre as tropas do que com os crimes que elas têm cometido contra os haitianos.

    Por sua vez, o ex-cantor popular Michel Martelly, que governa o Haiti desde o final de maio, também não se acanhou em tomar seu papel no show de hipocrisias montado para garantir a impunidade em relação a mais este crime: esbravejou pedindo justiça e, na sequência, reassumiu sua posição de gerente de um país ocupado, aguardando a decisão de seus chefes, da Minustah e da ONU, declarando que “aguarda um relatório detalhado estabelecendo os fatos e as circunstâncias exatas”.

    No seu papel de comandante da chamada Missão da ONU pela Estabilização do Haiti, a Minustah, o general brasileiro Luiz Ramos emitiu uma nota que caracteriza o episódio como absolutamente excepcional e, numa demonstração de cinismo inegualável, dedica mais espaço para lamentar a morte ou ferimento de quase 40 militares uruguaios, no decorrer dos sete anos de ocupação, do que ao fato de que alguns deles são, reconhecidamente, estupradores.

    Por fim, pra não dizer que o governo Dilma ficou apenas no silêncio cúmplice, mas também embarcou na onda de hipocrisia, cabe lembrar que, o ministro da Defesa Celso Amorin, questionado sobre o episódio durante uma visita a Argentina, na segunda dia 5, defendeu que o Brasil precisa “evitar saída desorganizada” e “começar a pensar na saída gradual de suas tropas do Haiti”.

    Na quinta, dia 8, já mais sintonizado com a manobra orquestrada pela Minustah, o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antonio Patriota, informou, em Montevidéu, durante a reunião da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que irá propor ao Conselho de Segurança da ONU a redução do número de soldados da missão de paz no Haiti, mesmo negando que isto tenha qualquer coisa a ver com o estupro.

    Promessas que ao mesmo tempo em que tem tudo para cair no vazio, deixam transparecer a crescente preocupação com a insatisfação e indignação do povo haitiano que, de fato, só tem uma saída, para a barbárie em que estão vivendo: promover a saída, “organizada” ou não, das tropas de ocupação de seu país.


    Sofrimento sem fim?

    As razões para a preocupação de Amorim são reais. Mais distante dos interesses brasileiros no Haiti, o “Jornal de Angola” relatou, no dia 8 de setembro, que, na segunda-feira, 5 de setembro, centenas de pessoas, incluindo políticos locais, organizaram um protesto na frente da base da ONU, exigindo a saída imediata das tropas e o julgamento, em solo haitiano, dos militares estupradores

    Nos rostos de muitos manifestantes vistos durante os protestos era impossível não perceber as marcas da indignação e de dor de gente que parece não ver fim para seu próprio sofrimento. São anos de ocupação e a convivência ainda cotidiana com as profundas marcas deixadas pelo terremoto que, há pouco mais de um ano, potencializado pelas péssimas condições de vida e moradia, provocou a morte de centenas de milhares (400 mil, no mínimo).

    A percepção de que as forças de ocupação estão trazendo mais prejuízos que benefícios já é antiga, como também não é nenhuma novidade que, além da violência política e da exploração econômica, a violência (particularmente a sexual) tem sido constante na história da Ocupação (leia artigo “Estupro como arma de Ocupação”).

    A crescente indignação diante de tudo isto se intensificou no final do ano passado, com o surgimento de uma epidemia de cólera (originada nos banheiros da tropas de ocupação, cujos detritos eram lançados num rio local) que, até o momento, já matou mais de 6.200 pessoas e deixou outras 40 mil doentes.

    A circulação do vídeo e a quase certeza da impunidade já fez com que, no decorrer da semana, outros protestos sob a bandeira “Justiça para Johnny” tenham pipocado em outros cantos do país. Unificar estes protestos e inseri-los na luta pela imediata tropas do Haiti é o único caminho para que o sofrido povo do país possa reconquistar sua dignidade, como indivíduos e como povo.


    Retirado do Site do PSTU

    segunda-feira, 12 de setembro de 2011

    O outro 11 de Setembro: a tragédia chilena

    Exilado no Chile, militante brasileiro viveu os meses que precederam o golpe e a derrubada do governo Allende, em 1973


    O golpe militar que derrubou Salvador Allende vitimou milhares de pessoas, destruiu os partidos políticos e as organizações dos trabalhadores e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Não por acaso, os estudantes e o povo que se manifestam nestes dias às centenas de milhares pelas ruas de Santiago levantam a bandeira de “Se va caer, se va caer, la educación de Pinochet”. Assim como a educação, a saúde e a previdência são privadas em sua esmagadora maioria, assim como as empresas que exploram o cobre, sua principal riqueza. Tão profunda foi a derrota imposta em 1973. A melhor homenagem aos caídos, aos centenas de milhares de exilados é essa demonstração de força das massas chilenas. Mas como se chegou a um desfecho tão terrível? Havia outra possibilidade? Como tão poderoso movimento social foi derrotado praticamente sem combates?



    O Chile em 1970

    O Chile tinha cerca de 10 milhões de habitantes, uma alta taxa de urbanização (75%), uma trajetória de quase cem anos de organização do movimento operário, o mais antigo e poderoso partido comunista das Américas, ao lado de um também antigo e forte partido socialista, que tinha uma forte ala esquerda. A democracia burguesa era bastante antiga e estável para os padrões latino-americanos: desde 1932 não havia golpes militares. O movimento de massas contava com uma poderosa central sindical, a CUT, cujos filiados representavam cerca de 25% dos assalariados.

    Na década de 60, o Chile conheceu um profundo processo de mobilizações operárias, populares e estudantis, devido ao estrangulamento do modelo econômico de substituição de importações à influência da revolução cubana. Não por acaso, a Democracia Cristã (DC), em 1964, foi às eleições para enfrentar a coalizão de esquerda com a bandeira de “Revolução em liberdade”. Seu programa focava a reforma agrária, a incorporação dos pobres da cidade à economia e a “chilenização” do cobre”. Esse partido contou com o forte apoio do imperialismo americano, que àquela época implementava seu programa da Aliança para o Progresso a fim de tentar deter a tremenda influência da revolução cubana.

    Após vencer as eleições, o governo Frei, da DC, mostrou abertamente sua cara patronal, repressiva, pró-imperialista. Inicialmente, sua estrategia parecia ter êxito, mas após dois anos, a inflação subiu, a reforma agrária estagnou, a chilenização do cobre mostrou-se um ótimo negócio para as companhias americanas. Com isso, o movimento de massas começou a aumentar significativamente suas lutas, havendo o aumento exponencial das greves, especialmente as ilegais. Houve três greves gerais até o processo eleitoral em 1970; os camponeses, estimulados pela promessa de reforma agrária, começaram a ocupar terras e aproveitaram-se da recente permissão de sindicalização antes negada para fazê-lo aos milhares.


    A Unidade Popular (UP)

    Em 1970, realizam-se as eleições e a coalizão de partidos de esquerda, a UP, consegue a primeira maioria, com Salvador Allende à cabeça. A UP era composta pelo Partido Comunista (PC), o Partido Socialista (PS)-, mais um pequeno partido dissidente da DC, o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e pequenas agrupações burguesas, como o Partido Radical), consegue a primeira maioria (36%). Para que o candidato vitorioso tivesse sua eleição confirmada ainda teria que passar pela aprovação do parlamento. Intensas pressões e negociações precederam essa votação. O imperialismo americano procura estimular os setores que não queriam a posse de Allende. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger resumiu a consideração do imperialismo americano com a vontade popular, ao comentar com seus colegas “não vejo por que temos que ficar parados e assistir a um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo».

    A extrema direita chegou a tentar sequestrar o comandante do Exercito, Rene Schneider, partidário de aceitar os resultados eleitorais, para forçar uma mudança na opinião das forças armadas e da burguesia, mas o general resistiu e morreu, e o resultado foi que o setor mais golpista da burguesia perdeu espaço. Antes de votar, no entanto, a DC obrigou a UP a aceitar um estatuto de garantias constitucionais que reafirmava o compromisso de manter as instituições centrais do regime capitalista.

    Antes de começarmos a fazer o balanço do governo, duas palavras sobre Allende. Era um antigo parlamentar socialista que concorreu pela quarta vez a presidente. Ele era um reformista convicto e nunca o escondeu. As concessões reais feitas na primeira parte de seu governo, a implacável oposição que seu governo sofreu por parte da burguesia e do imperialismo e sua morte trágica provocada pelos golpistas assassinos fizeram com que seja idolatrado pelas massas. Mas não devemos nos confundir: seu grande valor pessoal no último ato ao enfrentar com coragem os gorilas chilenos não redime seus erros, a escolha equivocada da chamada via institucional ao socialismo e sua responsabilidade na derrota.


    O primeiro ano

    A UP tinha um programa de reformas básicas que incluía a aceleração da reforma agrária segundo a mesma lei aprovada no governo Frei e principalmente a nacionalização completa do cobre, que representava 80% das receitas de exportação do país. Quanto à indústria seria dividida em três áreas, privada, mista e área de propriedade social (APS). A esta última, seriam incorporadas as empresas monopólicas. Nas áreas não estatais a única participação dos trabalhadores seria através dos pouco definidos comitês de vigilância da produção. Os bancos seriam também nacionalizados.
    O programa da UP fazia uma referência vaga a uma transição ao socialismo respeitando as leis e a institucionalidade vigentes, sem especificar seus ritmos e métodos. Allende em vários discursos como presidente falava de uma segunda forma de transição ao socialismo, supostamente defendida por Marx, ou seja, uma transição respeitando as regras estabelecidas pelo regime burguês, pacífica, enaltecendo a suposta “flexibilidade” das instituições do estado chileno.

    Outro elemento no programa da Unidade Popular que estimulou o movimento a lutar foi a declaração de que “as transformações revolucionárias de que o país necessita somente poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e efetivamente”. Era uma declaração genérica, uma concessão à sua ala esquerda, sem maiores precisões, mas mesmo assim era uma linguagem distinta dos demais governos e foi tomada ao pé da letra pelos trabalhadores e pelos setores populares e acabou ultrapassando em muito as ações e intenções do governo e com ele se chocou em vários momentos.

    O governo Allende foi um clássico governo de colaboração de classes em um país dependente do imperialismo, marcado por uma profunda instabilidade, particularmente a partir do locaute patronal de 1972.

    Para tornarmos mais clara essa definição, cedemos à tentação de fazermos algumas analogias históricas, como uma aproximação a uma realidade viva e complexa. Pelo seu conteúdo programático, pela sua prática de tentar manter o movimento de massas como um apoiador controlado do governo, mais além das menções retóricas, para “dias de festa” a uma transição ao socialismo, assemelhava-se a outros governos nacionalistas burgueses da América Latina, entre eles o de Goulart no Brasil. Pela composição predominante dos partidos que o compunham e pelo apoio da principal organização sindical do país, a CUT chilena, tinha semelhança com outros regimes de colaboração de classes, chamados de frente popular pela denominação dada pela Internacional Comunista sob domínio de Stálin. A proposta era a de organizar uma aliança anti-monopolista, antioligárquica e anti-imperialista entre a classe trabalhadora, setores da classe média e uma suposta burguesia nacional, oposta aos monopólios e ao imperialismo para completar uma primeira fase democrático-burguesa do processo revolucionário.

    A partir de outubro de 1972, o governo, além das características anteriores, começa a se assemelhar aos governos no auge de situações revolucionárias, e logo nos vêm à mente o exemplo de Kerensky na Rússia em 1917, em que, sem deixar de ter projetos nem de existir, cada vez mais é totalmente impotente entre as duas classes fundamentais que se enfrentavam, entre revolução e contrarrevolução. De qualquer forma, era um governo que explicitamente não rompia nem pretendia romper com os marcos da dominação estatal capitalista.

    Mas não nos adiantemos. Vejamos como evoluiu o processo. O Chile que Allende recebeu vivia uma profunda crise econômica, recessão e inflação na casa dos 35% e a maior dívida externa per capita do mundo. A UP aplicou uma estratégia inicial de reativar a economia com medidas de estímulo keynesiano, aumentando os salários pelo menos no nível da inflação, elevando os benefício sociais (entre eles, a entrega gratuita de meio litro de leite para cada criança do país) e , em especial os previdenciários, aumentando o crédito para a economia, diminuindo o desemprego, estimulando a construção de casas populares, acelerando a reforma agrária, começando a nacionalizar os principais monopólios industriais e bancários por meio da compra e muito especialmente nacionalizando as riquezas naturais básicas, entre elas, claro, em primeiro lugar, o cobre, o chamado “salário do Chile”. O efeito foi imenso, em 1971 houve uma grande transferência de renda para o trabalho assalariado, que alguns dizem ter atingido 10% da renda nacional (o que é verdadeiramente extraordinário), o desemprego baixou quase à metade, para 3,9%. A ideia era de, a partir do aumento da popularidade advinda dessas medidas, lançar medidas de democratização do Estado, em particular a Assembleia Popular, espécie de câmara legislativa única para poder prosseguir com as reformas. Com isso, cinco meses após assumir o poder, a UP conseguiu 51% dos votos nas eleições municipais.

    Mas as coisas não corriam exatamente como previam os dirigentes da UP: a burguesia obtinha enormes lucros com a reativação da economia, mas não investia quase nada, por seu caráter parasitário e principalmente por um cálculo político: até que ponto os dirigentes da UP poderiam controlar os trabalhadores? A mesma desconfiança teriam os setores privilegiados das classes médias urbanas e rurais.

    Por outro lado, as massas, depositavam enormes expectativas no governo e o apoiavam, sentindo que havia chegado o momento de conquistar seus direitos tanto tempo postergados: as ocupações de terras explodiram, inclusive superando os limites da reforma burguesa herdada da DC: ao contrário de respeitar o limite de 80 hectares de irrigação básica, o que deixaria cerca de 40% das melhores terras nas mãos dos grandes e médios proprietários, os camponeses resolveram se adiantar e começaram a ocupá-las, organizando-se em conselhos camponeses autônomos dos oficiais e propondo a radicalização da reforma agrária. Papel importante tiveram os mapuches, povo indígena conquistado e espoliado desde a época dos espanhóis, que pediam a restituição de suas terras. A reação do governo foi dupla : condenou, inclusive pela palavra do próprio Allende, a radicalização, mas, para não perder o controle acelerou a reforma agrária, a tal ponto que em dois anos se cumpriram as metas para seis anos...

    É interessante que tenha sido do campo, da província de Linares, de onde tenha surgido a primeira contestação organizada, pela esquerda, à política do governo: o congresso de camponeses daquela província, em 1971, exigiu o aprofundamento da lei de reforma agrária herdada da DC que deixava as melhores terras nas mãos dos grandes proprietários, pedindo a diminuição do limite expropriável para 40 hectares de irrigação básica e o fim da possibilidade de os latifundiários reservarem as melhores terras para eles, assim como suas máquinas e animais.

    Nas cidades, os trabalhadores começaram a reivindicar melhores salários e condições de trabalho, as greves continuam aumentando exponencialmente. Muitas empresas foram ocupadas para forçar a sua nacionalização, mesmo aquelas que não preenchiam os critérios definidos pela UP (não havia uma lista definida nem havia possibilidade de passar uma lei pelo congresso, dominado pela direita). Por exemplo, a tecelagem Yarur, de propriedade de uma das famílias mais ricas do país, era uma das candidatas, mas o governo não havia anunciado sua nacionalização. Os dirigentes sindicais da fábrica que eram da UP e os trabalhadores de base precipitaram um conflito laboral, ocuparam a empresa e pediram a sua passagem para a APS. Como conta o historiador Peter Winn (“Tecedores da Revolução), depois de muito pressionar o governo e contando com a oposição pessoal de Allende, os trabalhadores o dobraram e o governo utilizou uma das chamadas brechas legais, utilizando legislação antiga e em desuso para intervir a empresa. Segundo o autor, nos ásperos diálogos, Allende foi claro e disse: “se eu ceder a vocês, outros farão o mesmo”. E efetivamente, várias outras empresas seguiram o mesmo caminho.

    Os moradores sem-teto que, entre ocupações e favelas, constituíam cerca de 20/25% da população de Santiago seguiram ocupando terrenos e exigindo a construção de casas e melhorias. Chamados genericamente de “pobladores”, este movimento atingiu um alto grau de organização e consciência, chegando a ter verdadeiras comunas populares, como a ocupação “Nueva La Habana”, que chegou a reunir 9 mil pessoas sob a influência de um organismo para-partidário do Movimento de Esquerda Revolucionário - MIR, o MPR (Movimiento de Pobladores Revolucionários).

    O MIR era uma organização que não pertencia formalmente à Unidade Popular e havia sido formado originalmente por dissidentes do PS, trotskistas e independentes e depois seguiu uma linha castrista sob a direção de Miguel Enriquez.

    Todos esses novos acontecimentos apareciam ainda como se fossem apenas um pouco mais do clima de ascenso e crise que se vivia antes da posse de Allende, com uma maior confiança por parte dos trabalhadores porque sentiam que o governo estava supostamente ao seu lado ou pelo menos que não usaria a repressão, como havia prometido solenemente.

    Em julho de 1971 o Congresso aprovou por unanimidade a nacionalização completa das minas de cobre e Allende propôs que as empresas (americanas) fossem compensadas financeiramente, mas que os lucros extraordinários auferidos nos últimos 15 anos fossem descontados, o que por pressão popular acabou sendo confirmado pelos órgãos do estado. Na verdade, o cálculo que se fazia à época é que as empresas mineradoras haviam lucrado tanto como todo o investimento em capital fixo no país durante sua história!

    Com isso, o imperialismo americano decide impor o chamado “bloqueio invisível” do país, cortando os créditos para as importações, bloqueando a renegociação da dívida externa do país, entrando em juízo para confiscar as exportações de cobre chilenas e financiando cada vez mais os movimentos de oposição ao governo. O nervosismo do imperialismo se explica pela situação na América Latina naquele período, com a desestabilização de vários países, como Argentina, Uruguai e Bolívia, no marco da iminente derrota no Vietnã e os reflexos da crise de 68 ainda bem presentes.


    Começa a polarização extrema entre as classes fundamentais

    A situação em direção ao final de 1971 vai lentamente mudando: a oposição burguesa se reorganizou, foi feita a primeira manifestação de massas contra o governo, com as senhoras de classe média orquestrando a “marcha das panelas vazias”, que coincidiu com a visita de um mês de Fidel Castro ao país, quando deu seu apoio à chamada “via pacífica ao socialismo”; a produção começou a cair por falta de investimentos, a inflação recomeçou a subir , as divisas do país se esgotaram, dificultando a importação de bens de consumo e insumos para a produção, o que levou o governo suspender o pagamento da dívida externa pela simples impossibilidade de continuar pagando.

    Frente a isso a UP começou a deliberar para mudar de rumo. Foram várias reuniões na primeira metade de 1972, quando finalmente a linha econômica do governo foi mudada. Foi demitido o ministro Pedro Vuskovic, independente, e assumiu Orlando Millas, do PC, com a orientação de frear as nacionalizações e os aumentos salariais e negociar um acordo com a DC sobre a extensão da APS.

    Pois foi naquele ano de 1972 em que tudo realmente começou a mudar de curso no que toca à disposição de luta das massas e à radicalização da oposição burguesa.
    É preciso dizer que as nacionalizações previstas pelo governo da UP não representariam mais do que 20% dos trabalhadores industriais do país, ou seja a política de alianças proposta deixava de fora o restante dos trabalhadores industriais, sem contar os trabalhadores da construção civil, os desempregados, os artesãos, e um largo percentual de trabalhadores rurais não integrados à reforma agrária. Um autor chileno, Fernando Mires, calcula que ficavam de fora 1,7 milhões de pessoas, em uma força de trabalho que era de cerca de três milhões de pessoas...

    Além disso, o método preferido da UP para nacionalizar era o de comprar as ações das empresas, o que foi feito em especial com os bancos; isso não tinha nenhuma semelhança com uma nacionalização de caráter socialista, expropriatória daqueles que tinham se apoderado por muitos anos da riqueza produzida por seus trabalhadores. Por pressão dos trabalhadores e pela resistência da patronal, as nacionalizações por esse método não mais foram possíveis e o governo utilizou os métodos de intervenção e requisição das empresas, que tinham o inconveniente de perpetuar o conflito com os antigos proprietários nos meandros do aparato legal do país.

    Por outro lado, o segundo o convênio CUT-governo de 1971, sobre a participação nas empresas da APS, o modelo de gestão seria dominado pelo Estado: a direção das empresas ficou nas mãos de um diretório com maioria nomeada pelo governo e a participação dos trabalhadores resumia-se em geral aos comitês de produção que ajudavam a implementar a política preferida do governo, impulsionada em especial pelo PC, a chamada “batalha da produção”, que levou a que a produção das empresas da APS tivesse resultados espetaculares antes que a crise econômica e o mercado negro não se tornassem dominantes.

    Na própria APS começaram a haver muitas críticas ao modelo, exigindo aumento da participação real dos trabalhadores, apontando em direção ao controle efetivo das empresas, como se expressou, por exemplo, no Encontro de Empresas Têxteis da APS, o principal setor industrial nacionalizado, realizado em meados de 1972.

    Começou a se formar, ao calor dos acontecimentos e da pressão das massas, uma polarização dentro da própria UP: contra a posição de Allende e do PC, alinhou-se a ala esquerda, majoritária, do PS, mais o MAPU, a Esquerda Cristã (uma nova cisão da DC ocorrida após a eleição de Allende) e de fora da Unidade Popular, o MIR. Os lemas da época eram “consolidar para avançar” e “avançar sem conciliar”, o que parece um jogo de palavras, mas significava que amplos setores das massas começaram a manifestar um enfoque diferente sobre a forma de enfrentar os patrões e a reação, sem deixar de apoiar o governo.

    Em maio, a direita se propõe a ocupar as ruas de Concepción, a segunda cidade industrial do país; a ala esquerda da UP e o MIR lideraram uma das maiores manifestações na historia da cidade a fim de impedi-los, sendo reprimidos pela polícia sob as ordens do prefeito do PC. Mais tarde, em julho, realiza-se a chamada Assembleia Popular de Concepción, na verdade um fórum público onde a esquerda debateu os rumos do processo chileno, com a presença independente, pela primeira vez, de vários organismos sociais, onde se pediu essencialmente a convocação de uma Assembleia Popular para implementar o programa da UP. Mesmo assim, foram publicamente desautorizados por Allende que reclamou da tentativa de se criar uma nova direção para o movimento popular.

    Em junho um acontecimento de grande magnitude ocorreu: a energia das massas começa a se expressar em lutas mais radicais, como já acontecia em todo o país, com o aumento ainda maior do número de greves ilegais, ocupações, barricadas nas ruas. Como em todos os grandes processos revolucionários, começaram a surgir organismos mais amplos, para dirigir as lutas, que haviam se ampliado e não mais poderiam ser levadas a bom termo pelas estruturas tradicionais, no caso da CUT. E isso se produziu, como costuma ocorrer sempre em situações semelhantes, da forma menos esperada.


    O primeiro cordão industrial: Cerrillos-Maipu

    A região de Cerrilos, ao sul da capital, era a principal concentração fabril de Santiago, contando com 46 mil trabalhadores espalhados por 250 fábricas (o país contava com 550 mil operários industriais). A maior parte das fábricas da região era moderna e não estava contemplada nos planos de nacionalização do governo, muito menos com a redução de seu número sob a nova orientação econômica da UP. Algumas dezenas de fábricas se mobilizaram, e os trabalhadores ocuparam as ruas do distrito, chegaram a ocupar o ministério do trabalho, dirigido por Mireya Baltra, comunista. Esse movimento se chocava frontalmente com os novos planos da Unidade Popular de frear as nacionalizações e ainda uniu-se às mobilizações dos camponeses da região. O cordão Cerrillos foi formado como uma coordenação entre os sindicatos de fábrica da região (os sindicatos chilenos eram organizados por fábrica), passando por cima da compartimentação imposta pela lei sindical e pela estrutura da CUT que não tinha organismos locais para coordenar as lutas, adotando uma forma territorial de organização. A plataforma de fundação do cordão já anuncia uma clara pressão para radicalizar o processo, pedindo além da passagem de muitas fábricas para a APS, o controle operário sobre todas as demais empresas na cidade e no campo, o estabelecimento de uma assembleia popular em substituição ao parlamento burguês e, sem deixar de reafirmar a legitimidade popular do governo, consideravam apoiá-lo “na medida em que este interpretasse as lutas e as mobilizações dos trabalhadores”, o que dava uma nota bem mais crítica ao movimento social. Posteriormente organizaram-se mais cerca de 30 cordões industriais em Santiago e ao longo do país. Eles contaram com um grau desigual de adesão e massividade, dependendo das conjunturas. Assim, durante as grandes crises que analisaremos a seguir tiveram um papel destacadíssimo, assumindo, a partir de sua origem sindical tarefas claramente políticas, refluindo posteriormente para reuniões de dirigentes sindicais com militância em partidos mais à esquerda (esquerda do PS, MIR) sem se independizarem do governo, funcionando como uma espécie de pressão de massas para tentar radicalizá-lo.


    O locaute de outubro e o surgimento de uma situação abertamente revolucionária

    A burguesia e o imperialismo, utilizando métodos que já haviam experimentado em outros países e conjunturas, como no Brasil de Jango, começaram a estimular os setores de classe média e todos os descontentes com o governo e se propuseram a lançar uma ofensiva final para derrubar ou fazer capitular a UP.

    Tudo começou com uma greve de caminhoneiros privados contrários à criação de uma empresa regional de transportes estatal no sul e que se estendeu a todo o Chile. Em um país tão longo e estreito, o cálculo é que isso faria o governo capitular rapidamente. Somaram-se as associações de profissionais liberais, em especial os médicos, os estabelecimentos comerciais, o transporte urbano e a patronal industrial. Era o locaute patronal massivo...

    O governo e a CUT reagiram formalmente, sem muita energia nem iniciativa, mas as massas deram uma resposta impressionante. Os trabalhadores decidiram que a conspiração burguesa para paralisar o país não prosperaria e decidiram tomas a produção em suas mãos. As fábricas foram ocupadas, os meios de transporte foram em muitos casos requisitados, muitos comércios foram abertos à força, começaram a se organizar formas de controle de preços e de distribuição direta em forma massiva, contra o cada vez mais florescente mercado negro. (calcula-se que cerca de metade da população de Santiago era abastecida pelos organismos populares em 1973, apesar de que 70% da distribuição atacadista estava nas mãos privadas e abastecia o mercado negro). Ah, sim, sem esquecer os comitês de vigilância para enfrentar os bandos fascistas e proteger as indústrias. Além dos cordões, surgiram comitês de coordenação com as lutas de bairros, os comandos comunais. Nas fábricas e bairros, pouco importava a filiação política, mesmo os trabalhadores democrata-cristãos aderiram a esta frente única de classe que tinham um caráter muito mais amplo que os setores organizados pela CUT e os partidos de esquerda. O locaute patronal havia fracassado! E nunca antes a classe trabalhadora chilena havia expressado tal combatividade, união e energia!

    Mas os dirigentes da UP não estavam à altura dos seus liderados. Em vez de se apoiarem na mobilização para encurralarem e derrotarem a burguesia e seus partidos, optaram pelo caminho da conciliação. Um processo que tinha começado como uma série de reformas, todas compatíveis com o sistema capitalista, havia chegado pouco a pouco a um impasse por força da intensa polarização de classes para chegar um novo auge em outubro. Sem chegar ainda a uma situação tão explosiva como em outras situações revolucionarias como na Espanha em 1936 ou a Bolívia em 1952, mas com um grau de mobilização inédito na América Latina há muito tempo, havia as condições para romper as amarras do legalismo e do programa autorestritivo da UP. Mas não foi essa a conclusão da maioria da liderança da UP. E mesmo os que pediam o avanço, na ala esquerda da própria UP, não percebiam que era preciso forjar uma alternativa independente à UP. Na verdade, constituíam-se em outro empecilho para a radicalização necessária, pois insistiam que o poder popular não deveria ser realmente independente, procuravam utilizá-lo como um elemento de pressão pela esquerda nos marcos do apoio ao governo.

    Allende concluiu um acordo com a DC para incluir os comandantes das forças armadas ao gabinete com a principal missão de garantir as eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas durante o locaute de outubro. Do ponto de vista econômico, isso veio a ser conhecido como o plano Prats-Millas (seus formuladores haviam sido o general Prats, comandante do Exército, e Orlando Millas, comunista e ministro de Economia) que previa reduzir a Área de Propriedade Social das 120 empresas inicialmente previstas para somente 49. Recordemos que cerca de 200 estavam ocupadas àquele momento como fruto do locaute de outubro. Este número chegou a mais de 300 em 1973, agrupando cerca de 40% dos trabalhadores industriais do país. Quando foi oficialmente lançado foi duramente combatido pelos cordões industriais com novas manifestações no centro de Santiago e barricadas nos distritos industriais. O plano teve que ser convenientemente engavetado, pois o governo não tinha forças para impô-lo.


    As eleições de 1973, o tancazo e a preparação do golpe

    Contrariamente a todas as expectativas, a oposição burguesa não conseguiu os 2/3 dos votos para declarar o impedimento de Allende, mesmo com os milhões de dólares despejados pelo imperialismo americano, o galopante mercado negro, a inflação que fechou 1972 ao redor de 200%. Com os 44% dados à UP, a via institucional do processo chileno estava fechada, como reconheceu o principal assessor político de Allende, o catalão Joan Garcés. Era voz corrente que o enfrentamento entre o processo revolucionário e a contrarrevolução era inevitável.

    O padrão após a metade de 1972 se repetiu de forma acentuada: a oposição utilizou todas as suas armas legais, o poder Judiciário, o Congresso, a Controladoria da República, o seu poder econômico, financiando o mercado negro, o desabastecimento, os locautes patronais, as associações de classe média e seus meios extralegais, os bandos armados fascistas.

    Em 29 de junho se dá o penúltimo ato do processo, já prenunciando o desastre: um regimento de tanques se levanta em Santiago, cerca o palácio presidencial, mata cerca de 22 pessoas, mas não consegue a adesão das demais unidades das Forças Armadas. A reação popular é espetacular, novamente, e num tempo concentrado: naquele dia, outra vez, a grande maioria das empresas foi ocupada. Uma grande manifestação comandada pelos cordões industriais vai a uma concentração em frente ao palácio exigindo o fechamento do Congresso e a punição aos golpistas. Mas Allende foi inflexível e se apegou desesperadamente à institucionalidade, deixando até de aplicar medidas elementares de saneamento dentro das corporações militares, coisa que muitos governantes pelo mundo já o fizeram sem serem revolucionários. Ao final da manifestação apresentou os generais que, junto com Prats haviam sido os heróis que haviam impedido o triunfo do golpe (entre eles, incrivelmente, o próprio Pinochet) e declarou o estado de emergência, o que dava aos militares o controle do país.

    Os meses seguintes mostraram a oposição preparando o terreno para o golpe: a Suprema Corte e o Congresso declararam a ilegalidade do governo, abrindo o caminho “legal” aos golpistas.

    Os militares começaram a se exercitar e coesionar suas fileiras. O pretexto foi a Lei de Controle de Armas aprovada após o locaute de outubro, sem que Allende a vetasse, e que permitia que os militares realizassem operações de busca e apreensão em qualquer lugar. Com essa desculpa foram acostumando os soldados rasos a se enfrentarem aos trabalhadores, foram testando a resistência dos cordões industriais.

    Uma última e patética negociação foi patrocinada por Allende e o PC: um novo diálogo com a DC, já claramente voltada para a derrubada do governo. O jornal do PC, El Siglo, estampava a manchete, “depois de um tancazo, por que não um dialogazo?” E por intermináveis cerca de 30 dias perderam tempo com uma campanha contra a guerra civil, quando havia é que se preparar para ela...A DC exigiu a capitulação total (um gabinete só de militares, a devolução de todas as empresas ocupadas, a promulgação de reforma constitucional que limitava drasticamente a APS e a repressão aos cordões industriais), o que Allende não podia aceitar.

    Os trabalhadores ficaram confusos e desmoralizados pela negativa do governo em contra-atacar a direita e pelas concessões feitas. Uma última, simbólica e inútil concessão foi a entrega do Canal 9 de TV, ocupado por seus trabalhadores e que conseguiam furar um pouco o bloqueio jornalístico dos monopólios televisivos. Prevendo qualquer ataque os trabalhadores por meio de seus sindicatos designavam guardas permanentes para proteger o canal 9.

    Bombardeio sobre Palácio La Moneda

    O resto já é conhecido. O golpe de 11 de setembro teve pouca, mas heróica resistência, em especial em algumas fábricas dos cordões. Cabem algumas considerações finais sobre o caráter do governo da Unidade Popular, seu programa e as alternativas que se estavam gerando ao final do processo, mas que não tiveram tempo de amadurecer.

    O programa da Unidade Popular (UP) revelou-se equivocado, pois não contemplava a união das amplas camadas de explorados e oprimidos do país e propunha a aliança com uma suposta burguesia nacional antimonopolista que se demonstrou estar mais ligada aos interesses do grande capital e ter uma clara concordância ideológica com este, mesmo no momento em que auferiu imensos lucros, arrastando setores importantes da classe média.

    Há na caudalosa polêmica sobre a experiência chilena: uma corrente majoritária dentro da esquerda e fora dela argumenta que o desastre se deveu à falta de acordo com o centro político (que supostamente representava a classe média e a burguesia “nacional”), ou seja, a DC. Sem poder entrarmos profundamente no tema, uma observação. A DC era o partido mais importante do capital no Chile, seus setores mais progressistas haviam rompido pela esquerda e sua base trabalhadora estava disposta a enfrentar o patronato como se demonstrou no locaute de outubro. Por outro lado, o limitado programa de reformas da Unidade Popular em uma sociedade dependente do imperialismo e tremendamente desigual abriu as comportas da luta social em uma sociedade extremamente desigual, o que desembocou em um grandioso processo revolucionário, que não comportava soluções parlamentares, nem a conciliação. As classes sociais fundamentais estavam em movimento e só o confronto poderia saldar contas. Revolução e contrarrevolução se enfrentavam nas ruas, fábricas campos e minas do país. O acordo com a DC significaria claramente a capitulação de todo o movimento social e a repressão de sua vanguarda, o que a UP não se atreveu a fazer. Ficou na metade do caminho, tentando desesperadamente conter o movimento que de certa forma provocou e que a ultrapassou completamente.


    A política militar da Unidade Popular

    O conjunto da orientação da UP já explica o porquê de ter havido tão pouca resistência ao golpe militar. Mas no terreno da sua atitude frente às forças armadas as coisas chegaram a um ponto incrível. Durante os três anos de governo em nenhum momento houve uma política frente à inevitável oposição da oficialidade à qualquer reforma social mais profunda. Inclusive se incutiu um mito que depois ficou claro que não tinha nenhum fundamento, o suposto caráter profissional e legalista das forças armadas chilenas. Na verdade, elas intervieram de forma sangrenta sempre que foram chamadas, como nas greves e mobilizações no governo Frei, com mortos e feridos. Em 1969 houve uma tentativa de golpe comandada pelo general Viaux, o mesmo que prepararia o assassinato do general René Schneider, mas isso não mudou uma vírgula esta orientação suicida. Não levantaram um programa de reivindicações básicas e muito sentidas na base e na suboficialidade contra os privilégios dos oficiais, a brutalidade e a falta de direitos democráticos, entre eles o direito de voto, e por melhorias no nível de vida, já que sofriam, como o conjunto de seus irmãos de classe, com a tremenda crise econômica exacerbada pela luta distributiva entre as classes fundamentais da sociedade, o flagelo do mercado negro e o desabastecimento. Nenhum controle das promoções militares, nenhuma depuração de oficiais golpistas e o principal, nenhuma propaganda antigolpista que passasse por cima da rígida estrutura militar e apelasse diretamente aos trabalhadores sob uniforme. Nem é preciso dizer que em nenhum momento se alentou a defesa armada do governo, única garantia que os soldados, marinheiros e suboficiais poderiam se atrever a rebelar-se, sem que isso significasse suicídio...

    A mentalidade legalista levou a que nem houvesse uma estratégia de resistência, as rádios de esquerda foram silenciadas e não havia transmissores alternativos, a orientação de ficar nos locais de trabalho não servia mais para uma situação extrema...mas era tudo consequência de três anos perdidos, de não ter a clareza e a coragem de enfrentar a realidade do enfrentamento, coisa que a burguesia demonstrou ter de sobra.

    Estamos em um terreno em que há poucas informações, mas hoje conhecemos melhor um episódio simbólico: o caso dos marinheiros antigolpistas.

    Desde a eleição de Allende, a tremenda divisão de classes que existia na Marinha chilena fez com que os marinheiros e suboficiais comemorassem intensamente a eleição e os oficiais a considerassem uma grande derrota. Por mais de dois anos centenas de marinheiros organizados nos barcos e em terra controlavam a atividade dos oficiais e quando viram que estavam abertamente organizando o golpe tentaram alertar o governo e pedir a ajuda aos partidos de esquerda para tomarem os barcos, como havia acontecido com a revolta da Armada em 1931. “Depois do golpe será impossível”, diziam, profeticamente. Não receberam resposta e foram presos e barbaramente torturados.

    Allende, no dia 5 de agosto de 1973, formava um novo e final gabinete cívico-militar, ironicamente chamado de “Gabinete de Segurança Nacional”, e, para apaziguar a oficialidade da Marinha, denunciou a subversão feita pela ultra-esquerda, fiel à sua estratégia de não afrontar a hierarquia militar. Somente 15 dias depois dos fatos retratou-se. Que poderia ter ocorrido se fossem alentados todos os filhos da classe trabalhadora sob uniforme a que rechaçassem as ordens golpistas e que o movimento sindical e popular fizesse uma campanha de massas com esse eixo sobre a base das forças armadas?

    Por uma dessas casualidades da vida, os marinheiros antigolpistas, em especial o principal dirigente, o sargento Cárdenas, sobreviveram, pois já estavam presos e os meandros burocráticos das prisões da ditadura fizeram com que não fossem assassinados e fosse ao exílio. Mais de 30 anos depois, um pesquisador chileno, Jorge Magasich, produziu um belo livro, “Los que dijeron no”, em que conta essa história e entrevista os marinheiros.

    Nos dias do golpe, juntamente com os bolsões de resistência, houve fuzilamentos nos quarteis e houve resistência ativa na escola de suboficiais da polícia, mas foram poucos, muitos menos dos que poderiam ter sido se a política da UP tivesse sido distinta. Claro que sempre uma derrota como essa parece inevitável e seria impossível provar com certeza o contrário, mas o conjunto das condições da época, os vasos comunicantes que havia entre um exército de conscritos e um movimento de massas que ocupava como nunca antes o centro político do país não poderiam deixar de influir para que as divisões surgissem. Mas para isso faltou uma política por parte do governo e do conjunto da esquerda com um tempo suficiente, e não os últimos chamados desesperados da esquerda do PS e do MIR para que os soldados desobedecessem às ordens golpistas.

    O poder popular
    Esta foi a expressão chilena para um fenômeno recorrente nos grandes processos revolucionários, que é o surgimento de organismos de poder dual que se enfrentam à institucionalidade burguesa. A originalidade chilena é que o termo poder popular consta no programa da UP, com uma conotação de apoio ao governo e como tal foi reivindicado por Allende e pela direita da UP, o PC e setores do PS. O proletariado e a esquerda chilenos tinham uma enorme tradição política, fruto de quase um século de atividade socialista quase ininterrupta, com seus altos e baixos. Por isso, na vanguarda havia debates interessantes, ao calor dos acontecimentos. Somente para citar, havia uma interpretação de que havia um poder dual dentro do aparelho de Estado, entre o governo e as demais instituições, numa grosseira deturpação do conceito tradicional do poder dual como um poder independente e oposto ao estado e suas instituições como se viu em tantos processos revolucionários. Mas, mesmo os mais radicais dentro da UP e o MIR consideravam o governo como um aliado vacilante, mas um aliado.

    De novembro de 1972 até o golpe existiram vários foros nos quais se debateu o poder popular, com a presença de seus dirigentes e/ou de dirigentes dos partidos de esquerda. Basicamente esboçavam-se duas posições.

    A primeira, era a de Allende e do PC que primeiro atacaram fortemente os cordões industriais, mas frente ao seu fortalecimento acabaram reconhecendo-os e aos comandos comunais formalmente, mas os concebiam como subordinados ao governo. Os comunistas somente neles ingressaram nos cordões a partir de julho de 1973 e mesmo assim sem muita força.

    A segunda posição era apoiada por quase todos os dirigentes dos cordões e sustentava que eles deveriam ser autônomos do governo, mas não a ele se opor. Nenhuma corrente expressiva se colocava a perspectiva de organizar uma força política e/ou social fora da UP, inclusive para melhor lutar contra os golpistas.

    Uma polêmica dentro desse campo era entre os que defendiam a primazia dos cordões industriais e os que defendiam os comandos comunais, como o MIR, argumentando que estes agrupavam ao conjunto dos explorados e que os cordões somente poderiam ter um papel sindical. Muito ainda está por ser escrito sobre os detalhes do movimento real, de base, dentro da revolução chilena, mas nos limitamos a observar que, mesmo sendo uma posição correta em abstrato, não respondia à realidade daquele momento, em que os cordões industriais tinham um peso muito maior. Na verdade, estranhamente, esta posição do MIR coincidia na prática com a opinião dos comunistas de integração dos cordões à CUT, desconhecendo o papel claramente político, muito além do meramente sindical, que tinham adquirido e como única alternativa real de exercerem um papel de vanguarda social naquele momento. Uma das razões que possivelmente influiu para essa posição do MIR foi a sua maior implantação nos setores de “pobladores”, enquanto sua inserção no proletariado industrial era bem reduzida ainda.

    A falta de independência dos cordões e dos órgãos de poder popular foi dramática quando se tratou de enfrentar o golpe que se preparava, pois se aguardavam as iniciativas do governo, que nunca vieram...por tudo isso, os cordões somente podem ser classificados como os mais avançados organismos embrionários, potenciais, de poder dual, que poderiam ter se desenvolvido como tais se o tempo permitisse o amadurecimento das suas posições.

    O mais próximo que se chegou a uma posição independente foi a carta da coordenação dos cordões industriais endereçada a Allende dias antes do golpe, em que o tom já era de bastante distância. Após refletirem sobre o significado do programa e da eleição da UP, sobre as concessões feitas à direita, enumeravam as medidas mínimas para lutar e terminavam com essas palavras que consideramos serem o ponto mais avançado a que ia chegando a vanguarda revolucionária chilena, mas que infelizmente não teve o tempo necessário para amadurecer e se fazer de massas. Outra poderia ter sido a história da classe trabalhadora e do povo do Chile e da América Latina se isso tivesse ocorrido.

    Dizia a carta:
    “Nós lhe advertimos camarada, que com o respeito e a confiança que ainda lhe temos, se não cumprir com o programa da Unidade Popular, se não confiar nas massas, perderá o único apoio real que tem como pessoa e dirigente e que será responsável por levar o país não à guerra civil que está já está em pleno desenvolvimento, mas ao massacre frio, planificado da classe operária mais consciente e organizada da América Latina. E [nós o advertimos] que será responsabilidade histórica deste Governo, levado ao poder e mantido com tanto sacrifício pelos trabalhadores, habitantes, camponeses, estudantes, intelectuais, profissionais, a destruição e descabeçamento, quiçá a tal prazo, e a tal custo sangrento, não só do processo revolucionário chileno, mas também o de todos os povos latino-americanos que estão lutando pelo Socialismo”.

    No entanto, essa evolução era lenta, limitada ainda a uma vanguarda ampla e dificultada pelas posições ambivalentes da esquerda do PS, que procurava conciliar o apoio aos cordões e a necessidade de superar a institucionalidade capitalista com a participação no governo, sem colocar a necessidade de forjar uma alternativa à UP. Se em um primeiro momento serviram de estímulo à mobilização, depois serviram como um freio, uma justificativa elaborada desde a “esquerda”, impedindo os trabalhadores de avançarem politicamente. Tinham a seu favor a enorme tradição de legalismo dentro do movimento de massas do Chile, na crença no que seus dirigentes lhe diziam sobre a imparcialidade dos militares e, fundamentalmente a confiança em seus dirigentes, a quem atribuíam muitas de suas conquistas. Sabemos como custou cara essa tradição...

    Falta dizer algumas palavras sobre o MIR, visto como a única alternativa à esquerda em relação à UP. Em que pese sua extrema juventude teve um crescimento importante durante os anos do governo Allende (calcula-se sua militância orgânica em cerca de 10 mil militantes, ainda que seja difícil determinar com precisão este número). No entanto, tinha limitações claras:

    Do ponto de vista político, não tinha uma estratégia clara frente à UP, na verdade, suas caracterizações apostavam em pressionar o governo para que radicalizasse suas posições. Isso explica o seu acordo eleitoral e programático com a esquerda do PS para as eleições parlamentares de 1973 e para a atuação dentro do movimento de massas.

    Do ponto de vista da organização para atuar no movimento de massas, fez uma transição incompleta de um partido de quadros, militarista, para um partido que aspirava conquistar influência de massas. Não conseguia incorporar organicamente uma grande quantidade de militantes que se sentiam atraídos por suas posições, pelos seus métodos internos bastante burocráticos (seu congresso de 1968 foi sucessivamente adiado até o golpe, em que pese o acúmulo de novos problemas e debates criados pela novíssima situação do país), o que aumentou a sua incoerência e as tensões internas.

    Seu ultimatismo no movimento dificultou sua estruturação no movimento operário (só teve 1,5% dos votos na eleição da CUT de 1972), mantendo sua força essencialmente entre os estudantes e favelados das cidades. Isso não nega, como no caso das demais organizações políticas de esquerda do pais, a abnegação e heroísmo de seus militantes.

    No momento mais difícil, apareceu com toda a sua força a principal deficiência do processo chileno: a inexistência de uma corrente revolucionária que tivesse acumulado as experiências e os quadros durante o processo revolucionário para poder propor à vanguarda e às massas a construção de uma alternativa à UP, com base na própria experiência da luta de classes, e não de forma doutrinária ou ultimatista. Uma alternativa à sua variante mais reformista, PC-Allende, como às suas variantes mais à esquerda – a esquerda do PS e o MIR.


    LEIA TAMBÉM

    Túlio Quintiliano: um trotkista no Chile


    DOCUMENTOS

    Carta dos Cordões Industriais ao presidente Salvador Allende


    NO ARQUIVO LEON TROTSKY

  • Adónde va Chile?, publicado na Revista da America, em 1972

  • 'Chile: el fin de la vía pacífica, publicado na Revista da America, em outubro de 1973


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