Exilado no Chile, militante brasileiro viveu os meses que precederam o golpe e a derrubada do governo Allende, em 1973
O golpe militar que derrubou Salvador Allende vitimou milhares de pessoas, destruiu os partidos políticos e as organizações dos trabalhadores e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Não por acaso, os estudantes e o povo que se manifestam nestes dias às centenas de milhares pelas ruas de Santiago levantam a bandeira de “Se va caer, se va caer, la educación de Pinochet”. Assim como a educação, a saúde e a previdência são privadas em sua esmagadora maioria, assim como as empresas que exploram o cobre, sua principal riqueza. Tão profunda foi a derrota imposta em 1973. A melhor homenagem aos caídos, aos centenas de milhares de exilados é essa demonstração de força das massas chilenas. Mas como se chegou a um desfecho tão terrível? Havia outra possibilidade? Como tão poderoso movimento social foi derrotado praticamente sem combates?
O Chile em 1970
O Chile tinha cerca de 10 milhões de habitantes, uma alta taxa de urbanização (75%), uma trajetória de quase cem anos de organização do movimento operário, o mais antigo e poderoso partido comunista das Américas, ao lado de um também antigo e forte partido socialista, que tinha uma forte ala esquerda. A democracia burguesa era bastante antiga e estável para os padrões latino-americanos: desde 1932 não havia golpes militares. O movimento de massas contava com uma poderosa central sindical, a CUT, cujos filiados representavam cerca de 25% dos assalariados.
Na década de 60, o Chile conheceu um profundo processo de mobilizações operárias, populares e estudantis, devido ao estrangulamento do modelo econômico de substituição de importações à influência da revolução cubana. Não por acaso, a Democracia Cristã (DC), em 1964, foi às eleições para enfrentar a coalizão de esquerda com a bandeira de “Revolução em liberdade”. Seu programa focava a reforma agrária, a incorporação dos pobres da cidade à economia e a “chilenização” do cobre”. Esse partido contou com o forte apoio do imperialismo americano, que àquela época implementava seu programa da Aliança para o Progresso a fim de tentar deter a tremenda influência da revolução cubana.
Após vencer as eleições, o governo Frei, da DC, mostrou abertamente sua cara patronal, repressiva, pró-imperialista. Inicialmente, sua estrategia parecia ter êxito, mas após dois anos, a inflação subiu, a reforma agrária estagnou, a chilenização do cobre mostrou-se um ótimo negócio para as companhias americanas. Com isso, o movimento de massas começou a aumentar significativamente suas lutas, havendo o aumento exponencial das greves, especialmente as ilegais. Houve três greves gerais até o processo eleitoral em 1970; os camponeses, estimulados pela promessa de reforma agrária, começaram a ocupar terras e aproveitaram-se da recente permissão de sindicalização antes negada para fazê-lo aos milhares.
A Unidade Popular (UP)
Em 1970, realizam-se as eleições e a coalizão de partidos de esquerda, a UP, consegue a primeira maioria, com Salvador Allende à cabeça. A UP era composta pelo Partido Comunista (PC), o Partido Socialista (PS)-, mais um pequeno partido dissidente da DC, o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e pequenas agrupações burguesas, como o Partido Radical), consegue a primeira maioria (36%). Para que o candidato vitorioso tivesse sua eleição confirmada ainda teria que passar pela aprovação do parlamento. Intensas pressões e negociações precederam essa votação. O imperialismo americano procura estimular os setores que não queriam a posse de Allende. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger resumiu a consideração do imperialismo americano com a vontade popular, ao comentar com seus colegas “não vejo por que temos que ficar parados e assistir a um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo».
A extrema direita chegou a tentar sequestrar o comandante do Exercito, Rene Schneider, partidário de aceitar os resultados eleitorais, para forçar uma mudança na opinião das forças armadas e da burguesia, mas o general resistiu e morreu, e o resultado foi que o setor mais golpista da burguesia perdeu espaço. Antes de votar, no entanto, a DC obrigou a UP a aceitar um estatuto de garantias constitucionais que reafirmava o compromisso de manter as instituições centrais do regime capitalista.
Antes de começarmos a fazer o balanço do governo, duas palavras sobre Allende. Era um antigo parlamentar socialista que concorreu pela quarta vez a presidente. Ele era um reformista convicto e nunca o escondeu. As concessões reais feitas na primeira parte de seu governo, a implacável oposição que seu governo sofreu por parte da burguesia e do imperialismo e sua morte trágica provocada pelos golpistas assassinos fizeram com que seja idolatrado pelas massas. Mas não devemos nos confundir: seu grande valor pessoal no último ato ao enfrentar com coragem os gorilas chilenos não redime seus erros, a escolha equivocada da chamada via institucional ao socialismo e sua responsabilidade na derrota.
O primeiro ano
A UP tinha um programa de reformas básicas que incluía a aceleração da reforma agrária segundo a mesma lei aprovada no governo Frei e principalmente a nacionalização completa do cobre, que representava 80% das receitas de exportação do país. Quanto à indústria seria dividida em três áreas, privada, mista e área de propriedade social (APS). A esta última, seriam incorporadas as empresas monopólicas. Nas áreas não estatais a única participação dos trabalhadores seria através dos pouco definidos comitês de vigilância da produção. Os bancos seriam também nacionalizados.
O programa da UP fazia uma referência vaga a uma transição ao socialismo respeitando as leis e a institucionalidade vigentes, sem especificar seus ritmos e métodos. Allende em vários discursos como presidente falava de uma segunda forma de transição ao socialismo, supostamente defendida por Marx, ou seja, uma transição respeitando as regras estabelecidas pelo regime burguês, pacífica, enaltecendo a suposta “flexibilidade” das instituições do estado chileno.
Outro elemento no programa da Unidade Popular que estimulou o movimento a lutar foi a declaração de que “as transformações revolucionárias de que o país necessita somente poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e efetivamente”. Era uma declaração genérica, uma concessão à sua ala esquerda, sem maiores precisões, mas mesmo assim era uma linguagem distinta dos demais governos e foi tomada ao pé da letra pelos trabalhadores e pelos setores populares e acabou ultrapassando em muito as ações e intenções do governo e com ele se chocou em vários momentos.
O governo Allende foi um clássico governo de colaboração de classes em um país dependente do imperialismo, marcado por uma profunda instabilidade, particularmente a partir do locaute patronal de 1972.
Para tornarmos mais clara essa definição, cedemos à tentação de fazermos algumas analogias históricas, como uma aproximação a uma realidade viva e complexa. Pelo seu conteúdo programático, pela sua prática de tentar manter o movimento de massas como um apoiador controlado do governo, mais além das menções retóricas, para “dias de festa” a uma transição ao socialismo, assemelhava-se a outros governos nacionalistas burgueses da América Latina, entre eles o de Goulart no Brasil. Pela composição predominante dos partidos que o compunham e pelo apoio da principal organização sindical do país, a CUT chilena, tinha semelhança com outros regimes de colaboração de classes, chamados de frente popular pela denominação dada pela Internacional Comunista sob domínio de Stálin. A proposta era a de organizar uma aliança anti-monopolista, antioligárquica e anti-imperialista entre a classe trabalhadora, setores da classe média e uma suposta burguesia nacional, oposta aos monopólios e ao imperialismo para completar uma primeira fase democrático-burguesa do processo revolucionário.
A partir de outubro de 1972, o governo, além das características anteriores, começa a se assemelhar aos governos no auge de situações revolucionárias, e logo nos vêm à mente o exemplo de Kerensky na Rússia em 1917, em que, sem deixar de ter projetos nem de existir, cada vez mais é totalmente impotente entre as duas classes fundamentais que se enfrentavam, entre revolução e contrarrevolução. De qualquer forma, era um governo que explicitamente não rompia nem pretendia romper com os marcos da dominação estatal capitalista.
Mas não nos adiantemos. Vejamos como evoluiu o processo. O Chile que Allende recebeu vivia uma profunda crise econômica, recessão e inflação na casa dos 35% e a maior dívida externa per capita do mundo. A UP aplicou uma estratégia inicial de reativar a economia com medidas de estímulo keynesiano, aumentando os salários pelo menos no nível da inflação, elevando os benefício sociais (entre eles, a entrega gratuita de meio litro de leite para cada criança do país) e , em especial os previdenciários, aumentando o crédito para a economia, diminuindo o desemprego, estimulando a construção de casas populares, acelerando a reforma agrária, começando a nacionalizar os principais monopólios industriais e bancários por meio da compra e muito especialmente nacionalizando as riquezas naturais básicas, entre elas, claro, em primeiro lugar, o cobre, o chamado “salário do Chile”. O efeito foi imenso, em 1971 houve uma grande transferência de renda para o trabalho assalariado, que alguns dizem ter atingido 10% da renda nacional (o que é verdadeiramente extraordinário), o desemprego baixou quase à metade, para 3,9%. A ideia era de, a partir do aumento da popularidade advinda dessas medidas, lançar medidas de democratização do Estado, em particular a Assembleia Popular, espécie de câmara legislativa única para poder prosseguir com as reformas. Com isso, cinco meses após assumir o poder, a UP conseguiu 51% dos votos nas eleições municipais.
Mas as coisas não corriam exatamente como previam os dirigentes da UP: a burguesia obtinha enormes lucros com a reativação da economia, mas não investia quase nada, por seu caráter parasitário e principalmente por um cálculo político: até que ponto os dirigentes da UP poderiam controlar os trabalhadores? A mesma desconfiança teriam os setores privilegiados das classes médias urbanas e rurais.
Por outro lado, as massas, depositavam enormes expectativas no governo e o apoiavam, sentindo que havia chegado o momento de conquistar seus direitos tanto tempo postergados: as ocupações de terras explodiram, inclusive superando os limites da reforma burguesa herdada da DC: ao contrário de respeitar o limite de 80 hectares de irrigação básica, o que deixaria cerca de 40% das melhores terras nas mãos dos grandes e médios proprietários, os camponeses resolveram se adiantar e começaram a ocupá-las, organizando-se em conselhos camponeses autônomos dos oficiais e propondo a radicalização da reforma agrária. Papel importante tiveram os mapuches, povo indígena conquistado e espoliado desde a época dos espanhóis, que pediam a restituição de suas terras. A reação do governo foi dupla : condenou, inclusive pela palavra do próprio Allende, a radicalização, mas, para não perder o controle acelerou a reforma agrária, a tal ponto que em dois anos se cumpriram as metas para seis anos...
É interessante que tenha sido do campo, da província de Linares, de onde tenha surgido a primeira contestação organizada, pela esquerda, à política do governo: o congresso de camponeses daquela província, em 1971, exigiu o aprofundamento da lei de reforma agrária herdada da DC que deixava as melhores terras nas mãos dos grandes proprietários, pedindo a diminuição do limite expropriável para 40 hectares de irrigação básica e o fim da possibilidade de os latifundiários reservarem as melhores terras para eles, assim como suas máquinas e animais.
Nas cidades, os trabalhadores começaram a reivindicar melhores salários e condições de trabalho, as greves continuam aumentando exponencialmente. Muitas empresas foram ocupadas para forçar a sua nacionalização, mesmo aquelas que não preenchiam os critérios definidos pela UP (não havia uma lista definida nem havia possibilidade de passar uma lei pelo congresso, dominado pela direita). Por exemplo, a tecelagem Yarur, de propriedade de uma das famílias mais ricas do país, era uma das candidatas, mas o governo não havia anunciado sua nacionalização. Os dirigentes sindicais da fábrica que eram da UP e os trabalhadores de base precipitaram um conflito laboral, ocuparam a empresa e pediram a sua passagem para a APS. Como conta o historiador Peter Winn (“Tecedores da Revolução), depois de muito pressionar o governo e contando com a oposição pessoal de Allende, os trabalhadores o dobraram e o governo utilizou uma das chamadas brechas legais, utilizando legislação antiga e em desuso para intervir a empresa. Segundo o autor, nos ásperos diálogos, Allende foi claro e disse: “se eu ceder a vocês, outros farão o mesmo”. E efetivamente, várias outras empresas seguiram o mesmo caminho.
Os moradores sem-teto que, entre ocupações e favelas, constituíam cerca de 20/25% da população de Santiago seguiram ocupando terrenos e exigindo a construção de casas e melhorias. Chamados genericamente de “pobladores”, este movimento atingiu um alto grau de organização e consciência, chegando a ter verdadeiras comunas populares, como a ocupação “Nueva La Habana”, que chegou a reunir 9 mil pessoas sob a influência de um organismo para-partidário do Movimento de Esquerda Revolucionário - MIR, o MPR (Movimiento de Pobladores Revolucionários).
O MIR era uma organização que não pertencia formalmente à Unidade Popular e havia sido formado originalmente por dissidentes do PS, trotskistas e independentes e depois seguiu uma linha castrista sob a direção de Miguel Enriquez.
Todos esses novos acontecimentos apareciam ainda como se fossem apenas um pouco mais do clima de ascenso e crise que se vivia antes da posse de Allende, com uma maior confiança por parte dos trabalhadores porque sentiam que o governo estava supostamente ao seu lado ou pelo menos que não usaria a repressão, como havia prometido solenemente.
Em julho de 1971 o Congresso aprovou por unanimidade a nacionalização completa das minas de cobre e Allende propôs que as empresas (americanas) fossem compensadas financeiramente, mas que os lucros extraordinários auferidos nos últimos 15 anos fossem descontados, o que por pressão popular acabou sendo confirmado pelos órgãos do estado. Na verdade, o cálculo que se fazia à época é que as empresas mineradoras haviam lucrado tanto como todo o investimento em capital fixo no país durante sua história!
Com isso, o imperialismo americano decide impor o chamado “bloqueio invisível” do país, cortando os créditos para as importações, bloqueando a renegociação da dívida externa do país, entrando em juízo para confiscar as exportações de cobre chilenas e financiando cada vez mais os movimentos de oposição ao governo. O nervosismo do imperialismo se explica pela situação na América Latina naquele período, com a desestabilização de vários países, como Argentina, Uruguai e Bolívia, no marco da iminente derrota no Vietnã e os reflexos da crise de 68 ainda bem presentes.
Começa a polarização extrema entre as classes fundamentais
A situação em direção ao final de 1971 vai lentamente mudando: a oposição burguesa se reorganizou, foi feita a primeira manifestação de massas contra o governo, com as senhoras de classe média orquestrando a “marcha das panelas vazias”, que coincidiu com a visita de um mês de Fidel Castro ao país, quando deu seu apoio à chamada “via pacífica ao socialismo”; a produção começou a cair por falta de investimentos, a inflação recomeçou a subir , as divisas do país se esgotaram, dificultando a importação de bens de consumo e insumos para a produção, o que levou o governo suspender o pagamento da dívida externa pela simples impossibilidade de continuar pagando.
Frente a isso a UP começou a deliberar para mudar de rumo. Foram várias reuniões na primeira metade de 1972, quando finalmente a linha econômica do governo foi mudada. Foi demitido o ministro Pedro Vuskovic, independente, e assumiu Orlando Millas, do PC, com a orientação de frear as nacionalizações e os aumentos salariais e negociar um acordo com a DC sobre a extensão da APS.
Pois foi naquele ano de 1972 em que tudo realmente começou a mudar de curso no que toca à disposição de luta das massas e à radicalização da oposição burguesa.
É preciso dizer que as nacionalizações previstas pelo governo da UP não representariam mais do que 20% dos trabalhadores industriais do país, ou seja a política de alianças proposta deixava de fora o restante dos trabalhadores industriais, sem contar os trabalhadores da construção civil, os desempregados, os artesãos, e um largo percentual de trabalhadores rurais não integrados à reforma agrária. Um autor chileno, Fernando Mires, calcula que ficavam de fora 1,7 milhões de pessoas, em uma força de trabalho que era de cerca de três milhões de pessoas...
Além disso, o método preferido da UP para nacionalizar era o de comprar as ações das empresas, o que foi feito em especial com os bancos; isso não tinha nenhuma semelhança com uma nacionalização de caráter socialista, expropriatória daqueles que tinham se apoderado por muitos anos da riqueza produzida por seus trabalhadores. Por pressão dos trabalhadores e pela resistência da patronal, as nacionalizações por esse método não mais foram possíveis e o governo utilizou os métodos de intervenção e requisição das empresas, que tinham o inconveniente de perpetuar o conflito com os antigos proprietários nos meandros do aparato legal do país.
Por outro lado, o segundo o convênio CUT-governo de 1971, sobre a participação nas empresas da APS, o modelo de gestão seria dominado pelo Estado: a direção das empresas ficou nas mãos de um diretório com maioria nomeada pelo governo e a participação dos trabalhadores resumia-se em geral aos comitês de produção que ajudavam a implementar a política preferida do governo, impulsionada em especial pelo PC, a chamada “batalha da produção”, que levou a que a produção das empresas da APS tivesse resultados espetaculares antes que a crise econômica e o mercado negro não se tornassem dominantes.
Na própria APS começaram a haver muitas críticas ao modelo, exigindo aumento da participação real dos trabalhadores, apontando em direção ao controle efetivo das empresas, como se expressou, por exemplo, no Encontro de Empresas Têxteis da APS, o principal setor industrial nacionalizado, realizado em meados de 1972.
Começou a se formar, ao calor dos acontecimentos e da pressão das massas, uma polarização dentro da própria UP: contra a posição de Allende e do PC, alinhou-se a ala esquerda, majoritária, do PS, mais o MAPU, a Esquerda Cristã (uma nova cisão da DC ocorrida após a eleição de Allende) e de fora da Unidade Popular, o MIR. Os lemas da época eram “consolidar para avançar” e “avançar sem conciliar”, o que parece um jogo de palavras, mas significava que amplos setores das massas começaram a manifestar um enfoque diferente sobre a forma de enfrentar os patrões e a reação, sem deixar de apoiar o governo.
Em maio, a direita se propõe a ocupar as ruas de Concepción, a segunda cidade industrial do país; a ala esquerda da UP e o MIR lideraram uma das maiores manifestações na historia da cidade a fim de impedi-los, sendo reprimidos pela polícia sob as ordens do prefeito do PC. Mais tarde, em julho, realiza-se a chamada Assembleia Popular de Concepción, na verdade um fórum público onde a esquerda debateu os rumos do processo chileno, com a presença independente, pela primeira vez, de vários organismos sociais, onde se pediu essencialmente a convocação de uma Assembleia Popular para implementar o programa da UP. Mesmo assim, foram publicamente desautorizados por Allende que reclamou da tentativa de se criar uma nova direção para o movimento popular.
Em junho um acontecimento de grande magnitude ocorreu: a energia das massas começa a se expressar em lutas mais radicais, como já acontecia em todo o país, com o aumento ainda maior do número de greves ilegais, ocupações, barricadas nas ruas. Como em todos os grandes processos revolucionários, começaram a surgir organismos mais amplos, para dirigir as lutas, que haviam se ampliado e não mais poderiam ser levadas a bom termo pelas estruturas tradicionais, no caso da CUT. E isso se produziu, como costuma ocorrer sempre em situações semelhantes, da forma menos esperada.
O primeiro cordão industrial: Cerrillos-Maipu
A região de Cerrilos, ao sul da capital, era a principal concentração fabril de Santiago, contando com 46 mil trabalhadores espalhados por 250 fábricas (o país contava com 550 mil operários industriais). A maior parte das fábricas da região era moderna e não estava contemplada nos planos de nacionalização do governo, muito menos com a redução de seu número sob a nova orientação econômica da UP. Algumas dezenas de fábricas se mobilizaram, e os trabalhadores ocuparam as ruas do distrito, chegaram a ocupar o ministério do trabalho, dirigido por Mireya Baltra, comunista. Esse movimento se chocava frontalmente com os novos planos da Unidade Popular de frear as nacionalizações e ainda uniu-se às mobilizações dos camponeses da região. O cordão Cerrillos foi formado como uma coordenação entre os sindicatos de fábrica da região (os sindicatos chilenos eram organizados por fábrica), passando por cima da compartimentação imposta pela lei sindical e pela estrutura da CUT que não tinha organismos locais para coordenar as lutas, adotando uma forma territorial de organização. A plataforma de fundação do cordão já anuncia uma clara pressão para radicalizar o processo, pedindo além da passagem de muitas fábricas para a APS, o controle operário sobre todas as demais empresas na cidade e no campo, o estabelecimento de uma assembleia popular em substituição ao parlamento burguês e, sem deixar de reafirmar a legitimidade popular do governo, consideravam apoiá-lo “na medida em que este interpretasse as lutas e as mobilizações dos trabalhadores”, o que dava uma nota bem mais crítica ao movimento social. Posteriormente organizaram-se mais cerca de 30 cordões industriais em Santiago e ao longo do país. Eles contaram com um grau desigual de adesão e massividade, dependendo das conjunturas. Assim, durante as grandes crises que analisaremos a seguir tiveram um papel destacadíssimo, assumindo, a partir de sua origem sindical tarefas claramente políticas, refluindo posteriormente para reuniões de dirigentes sindicais com militância em partidos mais à esquerda (esquerda do PS, MIR) sem se independizarem do governo, funcionando como uma espécie de pressão de massas para tentar radicalizá-lo.
O locaute de outubro e o surgimento de uma situação abertamente revolucionária
A burguesia e o imperialismo, utilizando métodos que já haviam experimentado em outros países e conjunturas, como no Brasil de Jango, começaram a estimular os setores de classe média e todos os descontentes com o governo e se propuseram a lançar uma ofensiva final para derrubar ou fazer capitular a UP.
Tudo começou com uma greve de caminhoneiros privados contrários à criação de uma empresa regional de transportes estatal no sul e que se estendeu a todo o Chile. Em um país tão longo e estreito, o cálculo é que isso faria o governo capitular rapidamente. Somaram-se as associações de profissionais liberais, em especial os médicos, os estabelecimentos comerciais, o transporte urbano e a patronal industrial. Era o locaute patronal massivo...
O governo e a CUT reagiram formalmente, sem muita energia nem iniciativa, mas as massas deram uma resposta impressionante. Os trabalhadores decidiram que a conspiração burguesa para paralisar o país não prosperaria e decidiram tomas a produção em suas mãos. As fábricas foram ocupadas, os meios de transporte foram em muitos casos requisitados, muitos comércios foram abertos à força, começaram a se organizar formas de controle de preços e de distribuição direta em forma massiva, contra o cada vez mais florescente mercado negro. (calcula-se que cerca de metade da população de Santiago era abastecida pelos organismos populares em 1973, apesar de que 70% da distribuição atacadista estava nas mãos privadas e abastecia o mercado negro). Ah, sim, sem esquecer os comitês de vigilância para enfrentar os bandos fascistas e proteger as indústrias. Além dos cordões, surgiram comitês de coordenação com as lutas de bairros, os comandos comunais. Nas fábricas e bairros, pouco importava a filiação política, mesmo os trabalhadores democrata-cristãos aderiram a esta frente única de classe que tinham um caráter muito mais amplo que os setores organizados pela CUT e os partidos de esquerda. O locaute patronal havia fracassado! E nunca antes a classe trabalhadora chilena havia expressado tal combatividade, união e energia!
Mas os dirigentes da UP não estavam à altura dos seus liderados. Em vez de se apoiarem na mobilização para encurralarem e derrotarem a burguesia e seus partidos, optaram pelo caminho da conciliação. Um processo que tinha começado como uma série de reformas, todas compatíveis com o sistema capitalista, havia chegado pouco a pouco a um impasse por força da intensa polarização de classes para chegar um novo auge em outubro. Sem chegar ainda a uma situação tão explosiva como em outras situações revolucionarias como na Espanha em 1936 ou a Bolívia em 1952, mas com um grau de mobilização inédito na América Latina há muito tempo, havia as condições para romper as amarras do legalismo e do programa autorestritivo da UP. Mas não foi essa a conclusão da maioria da liderança da UP. E mesmo os que pediam o avanço, na ala esquerda da própria UP, não percebiam que era preciso forjar uma alternativa independente à UP. Na verdade, constituíam-se em outro empecilho para a radicalização necessária, pois insistiam que o poder popular não deveria ser realmente independente, procuravam utilizá-lo como um elemento de pressão pela esquerda nos marcos do apoio ao governo.
Allende concluiu um acordo com a DC para incluir os comandantes das forças armadas ao gabinete com a principal missão de garantir as eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas durante o locaute de outubro. Do ponto de vista econômico, isso veio a ser conhecido como o plano Prats-Millas (seus formuladores haviam sido o general Prats, comandante do Exército, e Orlando Millas, comunista e ministro de Economia) que previa reduzir a Área de Propriedade Social das 120 empresas inicialmente previstas para somente 49. Recordemos que cerca de 200 estavam ocupadas àquele momento como fruto do locaute de outubro. Este número chegou a mais de 300 em 1973, agrupando cerca de 40% dos trabalhadores industriais do país. Quando foi oficialmente lançado foi duramente combatido pelos cordões industriais com novas manifestações no centro de Santiago e barricadas nos distritos industriais. O plano teve que ser convenientemente engavetado, pois o governo não tinha forças para impô-lo.
As eleições de 1973, o tancazo e a preparação do golpe
Contrariamente a todas as expectativas, a oposição burguesa não conseguiu os 2/3 dos votos para declarar o impedimento de Allende, mesmo com os milhões de dólares despejados pelo imperialismo americano, o galopante mercado negro, a inflação que fechou 1972 ao redor de 200%. Com os 44% dados à UP, a via institucional do processo chileno estava fechada, como reconheceu o principal assessor político de Allende, o catalão Joan Garcés. Era voz corrente que o enfrentamento entre o processo revolucionário e a contrarrevolução era inevitável.
O padrão após a metade de 1972 se repetiu de forma acentuada: a oposição utilizou todas as suas armas legais, o poder Judiciário, o Congresso, a Controladoria da República, o seu poder econômico, financiando o mercado negro, o desabastecimento, os locautes patronais, as associações de classe média e seus meios extralegais, os bandos armados fascistas.
Em 29 de junho se dá o penúltimo ato do processo, já prenunciando o desastre: um regimento de tanques se levanta em Santiago, cerca o palácio presidencial, mata cerca de 22 pessoas, mas não consegue a adesão das demais unidades das Forças Armadas. A reação popular é espetacular, novamente, e num tempo concentrado: naquele dia, outra vez, a grande maioria das empresas foi ocupada. Uma grande manifestação comandada pelos cordões industriais vai a uma concentração em frente ao palácio exigindo o fechamento do Congresso e a punição aos golpistas. Mas Allende foi inflexível e se apegou desesperadamente à institucionalidade, deixando até de aplicar medidas elementares de saneamento dentro das corporações militares, coisa que muitos governantes pelo mundo já o fizeram sem serem revolucionários. Ao final da manifestação apresentou os generais que, junto com Prats haviam sido os heróis que haviam impedido o triunfo do golpe (entre eles, incrivelmente, o próprio Pinochet) e declarou o estado de emergência, o que dava aos militares o controle do país.
Os meses seguintes mostraram a oposição preparando o terreno para o golpe: a Suprema Corte e o Congresso declararam a ilegalidade do governo, abrindo o caminho “legal” aos golpistas.
Os militares começaram a se exercitar e coesionar suas fileiras. O pretexto foi a Lei de Controle de Armas aprovada após o locaute de outubro, sem que Allende a vetasse, e que permitia que os militares realizassem operações de busca e apreensão em qualquer lugar. Com essa desculpa foram acostumando os soldados rasos a se enfrentarem aos trabalhadores, foram testando a resistência dos cordões industriais.
Uma última e patética negociação foi patrocinada por Allende e o PC: um novo diálogo com a DC, já claramente voltada para a derrubada do governo. O jornal do PC, El Siglo, estampava a manchete, “depois de um tancazo, por que não um dialogazo?” E por intermináveis cerca de 30 dias perderam tempo com uma campanha contra a guerra civil, quando havia é que se preparar para ela...A DC exigiu a capitulação total (um gabinete só de militares, a devolução de todas as empresas ocupadas, a promulgação de reforma constitucional que limitava drasticamente a APS e a repressão aos cordões industriais), o que Allende não podia aceitar.
Os trabalhadores ficaram confusos e desmoralizados pela negativa do governo em contra-atacar a direita e pelas concessões feitas. Uma última, simbólica e inútil concessão foi a entrega do Canal 9 de TV, ocupado por seus trabalhadores e que conseguiam furar um pouco o bloqueio jornalístico dos monopólios televisivos. Prevendo qualquer ataque os trabalhadores por meio de seus sindicatos designavam guardas permanentes para proteger o canal 9.
O resto já é conhecido. O golpe de 11 de setembro teve pouca, mas heróica resistência, em especial em algumas fábricas dos cordões. Cabem algumas considerações finais sobre o caráter do governo da Unidade Popular, seu programa e as alternativas que se estavam gerando ao final do processo, mas que não tiveram tempo de amadurecer.
O programa da Unidade Popular (UP) revelou-se equivocado, pois não contemplava a união das amplas camadas de explorados e oprimidos do país e propunha a aliança com uma suposta burguesia nacional antimonopolista que se demonstrou estar mais ligada aos interesses do grande capital e ter uma clara concordância ideológica com este, mesmo no momento em que auferiu imensos lucros, arrastando setores importantes da classe média.
Há na caudalosa polêmica sobre a experiência chilena: uma corrente majoritária dentro da esquerda e fora dela argumenta que o desastre se deveu à falta de acordo com o centro político (que supostamente representava a classe média e a burguesia “nacional”), ou seja, a DC. Sem poder entrarmos profundamente no tema, uma observação. A DC era o partido mais importante do capital no Chile, seus setores mais progressistas haviam rompido pela esquerda e sua base trabalhadora estava disposta a enfrentar o patronato como se demonstrou no locaute de outubro. Por outro lado, o limitado programa de reformas da Unidade Popular em uma sociedade dependente do imperialismo e tremendamente desigual abriu as comportas da luta social em uma sociedade extremamente desigual, o que desembocou em um grandioso processo revolucionário, que não comportava soluções parlamentares, nem a conciliação. As classes sociais fundamentais estavam em movimento e só o confronto poderia saldar contas. Revolução e contrarrevolução se enfrentavam nas ruas, fábricas campos e minas do país. O acordo com a DC significaria claramente a capitulação de todo o movimento social e a repressão de sua vanguarda, o que a UP não se atreveu a fazer. Ficou na metade do caminho, tentando desesperadamente conter o movimento que de certa forma provocou e que a ultrapassou completamente.
A política militar da Unidade Popular
O conjunto da orientação da UP já explica o porquê de ter havido tão pouca resistência ao golpe militar. Mas no terreno da sua atitude frente às forças armadas as coisas chegaram a um ponto incrível. Durante os três anos de governo em nenhum momento houve uma política frente à inevitável oposição da oficialidade à qualquer reforma social mais profunda. Inclusive se incutiu um mito que depois ficou claro que não tinha nenhum fundamento, o suposto caráter profissional e legalista das forças armadas chilenas. Na verdade, elas intervieram de forma sangrenta sempre que foram chamadas, como nas greves e mobilizações no governo Frei, com mortos e feridos. Em 1969 houve uma tentativa de golpe comandada pelo general Viaux, o mesmo que prepararia o assassinato do general René Schneider, mas isso não mudou uma vírgula esta orientação suicida. Não levantaram um programa de reivindicações básicas e muito sentidas na base e na suboficialidade contra os privilégios dos oficiais, a brutalidade e a falta de direitos democráticos, entre eles o direito de voto, e por melhorias no nível de vida, já que sofriam, como o conjunto de seus irmãos de classe, com a tremenda crise econômica exacerbada pela luta distributiva entre as classes fundamentais da sociedade, o flagelo do mercado negro e o desabastecimento. Nenhum controle das promoções militares, nenhuma depuração de oficiais golpistas e o principal, nenhuma propaganda antigolpista que passasse por cima da rígida estrutura militar e apelasse diretamente aos trabalhadores sob uniforme. Nem é preciso dizer que em nenhum momento se alentou a defesa armada do governo, única garantia que os soldados, marinheiros e suboficiais poderiam se atrever a rebelar-se, sem que isso significasse suicídio...
A mentalidade legalista levou a que nem houvesse uma estratégia de resistência, as rádios de esquerda foram silenciadas e não havia transmissores alternativos, a orientação de ficar nos locais de trabalho não servia mais para uma situação extrema...mas era tudo consequência de três anos perdidos, de não ter a clareza e a coragem de enfrentar a realidade do enfrentamento, coisa que a burguesia demonstrou ter de sobra.
Estamos em um terreno em que há poucas informações, mas hoje conhecemos melhor um episódio simbólico: o caso dos marinheiros antigolpistas.
Desde a eleição de Allende, a tremenda divisão de classes que existia na Marinha chilena fez com que os marinheiros e suboficiais comemorassem intensamente a eleição e os oficiais a considerassem uma grande derrota. Por mais de dois anos centenas de marinheiros organizados nos barcos e em terra controlavam a atividade dos oficiais e quando viram que estavam abertamente organizando o golpe tentaram alertar o governo e pedir a ajuda aos partidos de esquerda para tomarem os barcos, como havia acontecido com a revolta da Armada em 1931. “Depois do golpe será impossível”, diziam, profeticamente. Não receberam resposta e foram presos e barbaramente torturados.
Allende, no dia 5 de agosto de 1973, formava um novo e final gabinete cívico-militar, ironicamente chamado de “Gabinete de Segurança Nacional”, e, para apaziguar a oficialidade da Marinha, denunciou a subversão feita pela ultra-esquerda, fiel à sua estratégia de não afrontar a hierarquia militar. Somente 15 dias depois dos fatos retratou-se. Que poderia ter ocorrido se fossem alentados todos os filhos da classe trabalhadora sob uniforme a que rechaçassem as ordens golpistas e que o movimento sindical e popular fizesse uma campanha de massas com esse eixo sobre a base das forças armadas?
Por uma dessas casualidades da vida, os marinheiros antigolpistas, em especial o principal dirigente, o sargento Cárdenas, sobreviveram, pois já estavam presos e os meandros burocráticos das prisões da ditadura fizeram com que não fossem assassinados e fosse ao exílio. Mais de 30 anos depois, um pesquisador chileno, Jorge Magasich,
produziu um belo livro, “Los que dijeron no”, em que conta essa história e entrevista os marinheiros.
Nos dias do golpe, juntamente com os bolsões de resistência, houve fuzilamentos nos quarteis e houve resistência ativa na escola de suboficiais da polícia, mas foram poucos, muitos menos dos que poderiam ter sido se a política da UP tivesse sido distinta. Claro que sempre uma derrota como essa parece inevitável e seria impossível provar com certeza o contrário, mas o conjunto das condições da época, os vasos comunicantes que havia entre um exército de conscritos e um movimento de massas que ocupava como nunca antes o centro político do país não poderiam deixar de influir para que as divisões surgissem. Mas para isso faltou uma política por parte do governo e do conjunto da esquerda com um tempo suficiente, e não os últimos chamados desesperados da esquerda do PS e do MIR para que os soldados desobedecessem às ordens golpistas.
O poder popular
Esta foi a expressão chilena para um fenômeno recorrente nos grandes processos revolucionários, que é o surgimento de organismos de poder dual que se enfrentam à institucionalidade burguesa. A originalidade chilena é que o termo poder popular consta no programa da UP, com uma conotação de apoio ao governo e como tal foi reivindicado por Allende e pela direita da UP, o PC e setores do PS. O proletariado e a esquerda chilenos tinham uma enorme tradição política, fruto de quase um século de atividade socialista quase ininterrupta, com seus altos e baixos. Por isso, na vanguarda havia debates interessantes, ao calor dos acontecimentos. Somente para citar, havia uma interpretação de que havia um poder dual dentro do aparelho de Estado, entre o governo e as demais instituições, numa grosseira deturpação do conceito tradicional do poder dual como um poder independente e oposto ao estado e suas instituições como se viu em tantos processos revolucionários. Mas, mesmo os mais radicais dentro da UP e o MIR consideravam o governo como um aliado vacilante, mas um aliado.
De novembro de 1972 até o golpe existiram vários foros nos quais se debateu o poder popular, com a presença de seus dirigentes e/ou de dirigentes dos partidos de esquerda. Basicamente esboçavam-se duas posições.
A primeira, era a de Allende e do PC que primeiro atacaram fortemente os cordões industriais, mas frente ao seu fortalecimento acabaram reconhecendo-os e aos comandos comunais formalmente, mas os concebiam como subordinados ao governo. Os comunistas somente neles ingressaram nos cordões a partir de julho de 1973 e mesmo assim sem muita força.
A segunda posição era apoiada por quase todos os dirigentes dos cordões e sustentava que eles deveriam ser autônomos do governo, mas não a ele se opor. Nenhuma corrente expressiva se colocava a perspectiva de organizar uma força política e/ou social fora da UP, inclusive para melhor lutar contra os golpistas.
Uma polêmica dentro desse campo era entre os que defendiam a primazia dos cordões industriais e os que defendiam os comandos comunais, como o MIR, argumentando que estes agrupavam ao conjunto dos explorados e que os cordões somente poderiam ter um papel sindical. Muito ainda está por ser escrito sobre os detalhes do movimento real, de base, dentro da revolução chilena, mas nos limitamos a observar que, mesmo sendo uma posição correta em abstrato, não respondia à realidade daquele momento, em que os cordões industriais tinham um peso muito maior. Na verdade, estranhamente, esta posição do MIR coincidia na prática com a opinião dos comunistas de integração dos cordões à CUT, desconhecendo o papel claramente político, muito além do meramente sindical, que tinham adquirido e como única alternativa real de exercerem um papel de vanguarda social naquele momento. Uma das razões que possivelmente influiu para essa posição do MIR foi a sua maior implantação nos setores de “pobladores”, enquanto sua inserção no proletariado industrial era bem reduzida ainda.
A falta de independência dos cordões e dos órgãos de poder popular foi dramática quando se tratou de enfrentar o golpe que se preparava, pois se aguardavam as iniciativas do governo, que nunca vieram...por tudo isso, os cordões somente podem ser classificados como os mais avançados organismos embrionários, potenciais, de poder dual, que poderiam ter se desenvolvido como tais se o tempo permitisse o amadurecimento das suas posições.
O mais próximo que se chegou a uma posição independente foi a
carta da coordenação dos cordões industriais endereçada a Allende dias antes do golpe, em que o tom já era de bastante distância. Após refletirem sobre o significado do programa e da eleição da UP, sobre as concessões feitas à direita, enumeravam as medidas mínimas para lutar e terminavam com essas palavras que consideramos serem o ponto mais avançado a que ia chegando a vanguarda revolucionária chilena, mas que infelizmente não teve o tempo necessário para amadurecer e se fazer de massas. Outra poderia ter sido a história da classe trabalhadora e do povo do Chile e da América Latina se isso tivesse ocorrido.
Dizia a carta:
“Nós lhe advertimos camarada, que com o respeito e a confiança que ainda lhe temos, se não cumprir com o programa da Unidade Popular, se não confiar nas massas, perderá o único apoio real que tem como pessoa e dirigente e que será responsável por levar o país não à guerra civil que está já está em pleno desenvolvimento, mas ao massacre frio, planificado da classe operária mais consciente e organizada da América Latina. E [nós o advertimos] que será responsabilidade histórica deste Governo, levado ao poder e mantido com tanto sacrifício pelos trabalhadores, habitantes, camponeses, estudantes, intelectuais, profissionais, a destruição e descabeçamento, quiçá a tal prazo, e a tal custo sangrento, não só do processo revolucionário chileno, mas também o de todos os povos latino-americanos que estão lutando pelo Socialismo”.
No entanto, essa evolução era lenta, limitada ainda a uma vanguarda ampla e dificultada pelas posições ambivalentes da esquerda do PS, que procurava conciliar o apoio aos cordões e a necessidade de superar a institucionalidade capitalista com a participação no governo, sem colocar a necessidade de forjar uma alternativa à UP. Se em um primeiro momento serviram de estímulo à mobilização, depois serviram como um freio, uma justificativa elaborada desde a “esquerda”, impedindo os trabalhadores de avançarem politicamente. Tinham a seu favor a enorme tradição de legalismo dentro do movimento de massas do Chile, na crença no que seus dirigentes lhe diziam sobre a imparcialidade dos militares e, fundamentalmente a confiança em seus dirigentes, a quem atribuíam muitas de suas conquistas. Sabemos como custou cara essa tradição...
Falta dizer algumas palavras sobre o MIR, visto como a única alternativa à esquerda em relação à UP. Em que pese sua extrema juventude teve um crescimento importante durante os anos do governo Allende (calcula-se sua militância orgânica em cerca de 10 mil militantes, ainda que seja difícil determinar com precisão este número). No entanto, tinha limitações claras:
Do ponto de vista político, não tinha uma estratégia clara frente à UP, na verdade, suas caracterizações apostavam em pressionar o governo para que radicalizasse suas posições. Isso explica o seu acordo eleitoral e programático com a esquerda do PS para as eleições parlamentares de 1973 e para a atuação dentro do movimento de massas.
Do ponto de vista da organização para atuar no movimento de massas, fez uma transição incompleta de um partido de quadros, militarista, para um partido que aspirava conquistar influência de massas. Não conseguia incorporar organicamente uma grande quantidade de militantes que se sentiam atraídos por suas posições, pelos seus métodos internos bastante burocráticos (seu congresso de 1968 foi sucessivamente adiado até o golpe, em que pese o acúmulo de novos problemas e debates criados pela novíssima situação do país), o que aumentou a sua incoerência e as tensões internas.
Seu ultimatismo no movimento dificultou sua estruturação no movimento operário (só teve 1,5% dos votos na eleição da CUT de 1972), mantendo sua força essencialmente entre os estudantes e favelados das cidades. Isso não nega, como no caso das demais organizações políticas de esquerda do pais, a abnegação e heroísmo de seus militantes.
No momento mais difícil, apareceu com toda a sua força a principal deficiência do processo chileno: a inexistência de uma corrente revolucionária que tivesse acumulado as experiências e os quadros durante o processo revolucionário para poder propor à vanguarda e às massas a construção de uma alternativa à UP, com base na própria experiência da luta de classes, e não de forma doutrinária ou ultimatista. Uma alternativa à sua variante mais reformista, PC-Allende, como às suas variantes mais à esquerda – a esquerda do PS e o MIR.
LEIA TAMBÉM
Túlio Quintiliano: um trotkista no Chile
DOCUMENTOS
Carta dos Cordões Industriais ao presidente Salvador Allende
NO ARQUIVO LEON TROTSKY
Adónde va Chile?, publicado na Revista da America, em 1972
'Chile: el fin de la vía pacífica, publicado na Revista da America, em outubro de 1973
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