Em janeiro de 2010, viajei a Cuba e pude
comprovar “in loco” as consequências do retorno do capitalismo dentro da
ilha e como a população lida com a falta de liberdades democráticas
A visita da blogueira Yoani Sanchéz ao Brasil reacendeu a polêmica sobre Cuba. Num confronto estridente entre os defensores e detratores de Yoani, jogou-se uma cortina de fumaça sobre que une a jornalista aos irmãos Castros: a defesa da restauração capitalista na Ilha.
Apesar do acordo com o governo cubano sobre a necessidade das reformas neoliberais em curso, a blogueira deseja a transformação do atual regime político numa democracia burguesa (eleições parlamentares, liberdade de imprensa, fim do partido único, etc.). Já os Castros, por seu turno, querem perpetuar a ditadura, tal como o modelo chinês. Precisamente nesse ponto reside a polêmica: capitalismo com ou sem ditadura do Partido Comunista Cubano?
Enquanto a passagem de Yoani pelo Brasil provocava polêmicas apaixonadas, o governo cubano apresentava, na Assembleia Nacional que reelegeu Raul Castro presidente do país, uma avaliação das medidas econômicas que aprofundaram a restauração capitalista na Ilha. Segundo Raúl Castro, as reformas estão criando "uma sociedade menos igualitária, porém mais justa" e insistiu em que é preciso superar "a barreira do imobilismo e a mentalidade obsoleta em favor de desatar os nós que detêm o desenvolvimento das forças produtivas". Em resumo, a processo de promoção das relações capitalistas seguirá se aprofundando, em que pese a retórica “socialista”.
Quando o (ex) Papa Bento XVI desembarcou em Cuba para uma visita oficial de três dias em 2012, o jornal Miami Herald, que não abriga nenhuma simpatia pelo governo cubano, afirmou que o pontífice iria encontrar uma Cuba “bem diferente” e que Raul Castro "aprovou a maior expansão da atividade econômica privada que já ocorreu sob o regime". O tom era eufórico, e não era para menos: o papa tinha ido “abençar” a restauração.
O capitalismo prospera em Cuba. As empresas estrangeiras dominam os setores chaves da economia e avançam sobre novos ramos. Não existem mais o monopólio estatal do comércio exterior nem a planificação da economia. A demissão em massa de funcionários públicos se articula com o aumento vertiginoso dos “trabalhadores por conta própria”, das pequenas empresas e cooperativas. O pleno emprego, a qualidade em saúde e educação públicas, enfim, as conquistas sociais da revolução, vão sendo desmontadas uma a uma, num processo incessante e doloroso.
O mais curioso, entretanto, é que diante de fatos incontestáveis, a esmagadora maioria da esquerda mundial ainda considere Cuba um país “socialista” ou um Estado “operário”. A verdade é muitas vezes desagradável, porém incontornável. O Estado cubano defende e promove as relações de propriedade capitalistas. Toda a realidade o demonstra.
Relatos da restauração
Numa viagem que fiz a Cuba, em janeiro de 2010, pude comprovar “in loco” essas afirmações. Não fiz uma viagem tutelada pelo roteiro oficial do regime, como muitos jovens do PCB, UJS e MST realizam; tampouco segui o itinerário dos turistas europeus, que inundam Cuba todos os anos e fazem o mesmo que os gringos faziam nas décadas de 40 e 50: turismo sexual, degradante e exótico. Preferi andar pelas ruas dos bairros mais pobres, conversar com os trabalhadores, os jovens, enfim, ouvir o que o povo tinha a dizer sem o filtro da censura oficial.
Dois acontecimentos me marcaram profundamente nessa viagem. Nos dia 14 de janeiro, eu estava próximo ao imponente edifício El Capitólio, numa esquina escura de Havana Vieja, quando vi uma cubana sendo abordada por um turista europeu. A conversa foi rápida, alguns minutos depois a jovem entrou num luxuoso hotel para estrangeiros. Essa mesma cena, em volume crescente, se repete aos milhares todos os dias. A prostituição retornou à Ilha.
Continue a caminhando. Na simpática ruela Obispo, encontrei José, vendedor de livros no centro de Havana. O senhor, de expressão cansada e conversa fácil, ofereceu-me obras de Marx e Lênin e me convidou a sua casa para mostrar as coleções. Em “seu” pequeno apartamento, repartido entre várias famílias, não há geladeira, tampouco cama ou fogão. Sobre uma estante antiga, os livros empoeirados. José fez-me uma oferta sem titubear: “as obras escolhidas de Marx em troca de sua camiseta”.
A decadência social e econômica
A decadência de Cuba, a partir da queda da União Soviética e da restauração capitalista, foi grave e contínua. O PIB (Produto Interno Bruto) caiu quase 35% entre 1989 e 1993; o déficit fiscal chegou a 33% do PIB em 1993. A condição de vida da população piorou fortemente. Assim, por exemplo, houve queda de mais de 30% na aquisição de calorias e proteínas por parte da população (José Luis Rodríguez García. A economia cubana: experiências e perspectivas (1989-2010). In: www.scielo.br ).
A lenta recuperação econômica, iniciada a partir dos anos 2000, não significou uma retomada no tocante ao antigo padrão de vida. Em realidade, o processo intensificou-se. Para dimensionar a regressão social verificada, basta lembrar que o valor real dos salários em Cuba, em 2011, representou cerca de 40% do valor aferido em 1989 (Archibald R. M. Ritter, Carleton University, Ottawa, Canada. Cuba’s Economic Problems and Prospects in a Changing Geo-Economic Environment ) . O salário médio em Cuba não ultrapassa os US$20 dólares.
A opinião popular é um indicador preciso do que se passa em Cuba. Na viagem que fiz, as pessoas reconheciam a “qualidade” da saúde e educação. No entanto, apontavam que esses serviços estavam piorando continuamente. Numa fila de ônibus na periferia de Havana, no dia 18 de janeiro de 2010, encontrei Pedro, um trabalhador de uma empresa estatal, quando o questionei sobre a qualidade da saúde e educação, ele me respondeu: “está piorando, cada vez mais. Desde década de 90 os serviços sociais pioram... as atuais reformas atacam ainda mais”.
Do mesmo modo, a queda na qualidade da saúde é inegável. A atenção médica segue gratuita, todavia, os medicamentos são escassos e na maioria dos casos as pessoas têm que compra-los. Assim, na viagem que realizei, comentou-me Rafael, que fazia “bicos” para sobreviver em Havana: “troco os livros por medicamentos ou roupas. Aqui em Cuba o dinheiro não existe, para mim o mais importante é se tenho acesso a medicamento ou roupas”.
Economia instável e ajuste neoliberal no Congresso do PCC
A economia cubana navega em águas turbulentas e se apoia em bases frágeis. O PIB do país não se recuperou dos impactos da crise internacional. Em 2011, a riqueza nacional cresceu apenas 2,7%. A ilha ostenta um déficit fiscal crônico (- 3,6% em 2011) e uma dívida externa crescente ($ 24 bilhões), a qual representa 29% do PIB (Maurício Front. Actualización in Perspective. Universidade de Havana).
Neste contexto delicado, a ditadura cubana impõe uma agenda de “reformas” ao país. As definições do XI do congresso do Partido Comunista Cubano, realizado em abril de 2011, aprofundam a restauração capitalista na Ilha. Em nome da “atualização do socialismo”, o governo leva a cabo um verdadeiro pacote de “maldades” contra o povo.
As principais medidas aprovadas são brutais, a saber: a) amplas facilidades para abertura de empresas de capital misto e cooperativas de trabalhadores; b) liquidação de empresas estatais deficitárias; c) cortes de subsídios estatais em todas as áreas; d) demissões em massa e extinção de benefícios sociais, como refeitórios populares, transporte escolar e principalmente da “libreta de abastecimento”, espécie de caderneta com a qual os cubanos podem adquirir gratuitamente gêneros de primeira necessidade.
Segundo o economista José Angel Jimenez, pesquisador da Universidade de Havana, “Se as mudanças propostas pelo PCC forem implementadas será algo sem precedentes. Nem as reformas feitas depois do fim da União Soviética (na década de 90) foram tão abrangentes” .
A nova localização de Cuba na divisão internacional do trabalho
A restauração capitalista está reconfigurando o papel de Cuba na divisão internacional do trabalho. A economia cubana é hoje ainda mais atrasada e dependente do que era em tempos de relação desigual com o antigo Bloco Socialista.
No que se refere à produção de alimentos, os impactos da restauração foram brutais. Em 1990, a exportação de alimentos excedia em mais de 600% a importação, porém, em 2009, o quadro se inverte: a importação de alimentos supera a exportação em cerca de 500% . Em uma frase: Cuba perdeu a soberania alimentar com a volta ao capitalismo.
É interessante notar, ainda, que a queda da produção de alimentos se deu em consonância com a “privatização” da terra. Para isso, uma parte substancial das fazendas estatais converteu-se em Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBPC), reduzindo a participação da propriedade estatal na terra cultivável de 75% para 33% .
A nova localização econômica de Cuba não se restringe ao campo. Um índice significativo para se medir o padrão de desenvolvimento de um país é o peso da indústria na composição da riqueza nacional. Para visualizarmos a trajetória descendente da indústria cubana, basta recordar que a produção industrial do país, em 2010, representou cerca de 50% do índice aferido em 1989. Em síntese: o retorno ao capitalismo desindustrializou Cuba.
As empresas estrangeiras em Cuba
Em 1995, o governo cubano deu um passo qualitativo no processo de restauração capitalista. Nesse ano foi aprovada a Lei de Inversões Estrangeiras, que permitiu o controle de setores estratégicos da economia pelo capital externo.
Infelizmente, o governo cubano não detalha o número de investidores estrangeiros nem a participação do “capital nacional” nos negócios. Entretanto, com alguns dados disponibilizados pela embaixada espanhola em Cuba, é possível aferir a dimensão e a profundidade do processo em curso. Em 2000, havia 392 associações com empresas estrangeiras, os capitais provinham de 46 países . Passado mais de dez anos, é de se esperar que esse número tenha se elevado substancialmente.
A Ilha possui a mais liberal lei de investimentos estrangeiros da América Latina. Recentemente, o governo anunciou que investidores estrangeiros agora podem ser donos de 100% dos empreendimentos. As empresas podem repatriar integralmente seus lucros, sem impostos. No Brasil, o limite de repatriação é de 27%. Mas não é só: o governo cubano proibiu a si mesmo, por lei, de expropriar propriedades de estrangeiros no país.
Por outro lado, Cuba é um verdadeiro “inferno” para os trabalhadores das empresas estrangeiras e mistas (em associação com a nova burguesia nativa). Vejamos algumas das regras do setor: a) os trabalhadores só podem ser contratados por meio de agências criadas pelo Estado; b) os investidores pagam as agências em dólares, mas as agências estatais pagam aos trabalhadores em pesos cubanos, essas ficam com 95% dos salários dos empregados; c) antes de ser contratado se realiza uma profunda investigação política do trabalhador interessado; d) é proibido formar sindicatos e realizar greves .
Os trabalhadores por conta própria e as pequenas empresas
Uma meta fundamental do governo cubano, contida na Reforma aprovada pelo congresso do Partido Comunista Cubano, é a expansão desenfreada dos trabalhadores por conta própria, das pequenas e micro empresas, além das cooperativas. Para assentar as bases para esse incremento sem precedentes da propriedade privada, o governo cubano iniciou a demissão em massa de trabalhadores estatais, que devem chegam a 1 milhão de demitidos até 2015. Os novos desempregados, por sua vez, buscam a sobrevivência em pequenos negócios privados que se multiplicam em proporções geométricas na Ilha.
O Banco Central de Cuba anunciou, agora em agosto, que o número de trabalhadores que exercem atividades em pequenas empresas privadas chegou a 390 mil . A expectativa declarada é de se chegar a 600 mil licenças até o final de 2013. Mas não é só. O ministro da economia de Cuba afirmou que o emprego no setor estatal caiu 7% no primeiro semestre de 2012 e anunciou um aumento de 35% dos trabalhadores privados ou "por conta própria" (abc.es) . Ainda segundo o ministro, a perspectiva, a médio prazo, é que o setor privado corresponda a 40% do PIB.
A ditadura capitalista e a luta pelo socialismo
No dia 22 de janeiro de 2010, fui assistir a um filme em Havana. O letreiro semi-apagado anunciava “Casa Vieja”. No antigo e charmoso cinema “Karl Marx”, centenas de cubanos assistiam atentos à película nacional. O filme tratava de temas polêmicos: homossexualidade, machismo e relações familiares. Num certo momento, um dos protagonistas dirigiu-se a outro personagem e perguntou: “nesse país se pode pensar?”. Todo cinema caiu em risadas, completando a ironia da cena.
A ditadura em Cuba amordaça e reprime violentamente. Não é permitida oposição pública, livre expressão, sindicatos independentes, partidos políticos, liberdade de organização, enfim, não é tolerada a mínima divergência organizada em relação ao regime. João, que trabalhava em um teatro em Havana Vieja, quase sussurrando me explicou a situação: “não posso manifestar minhas opiniões, não posso viajar, para falar com vocês tenho que falar em voz baixa para ninguém ouvir... queria comprar um sapato, mas não posso, meu salário não permite... Veja: dizem que a educação é boa e é verdade, mas do que adianta isso se eu não posso ter minhas opiniões livres?”
Com a restauração capitalista, o regime ditatorial se tornou ainda mais nefasto. A ditadura “castrista” que se erguia sobre a base social de um Estado operário, hoje se apoia sobre o capitalismo. A diferença em relação a qualquer país latino-americano que derrubou regimes ditatoriais na década de 80 é que em Cuba, frente ao ajuste neoliberal do governo, não se pode fazer greves, realizar manifestações ou mesmo organizar um sindicato livre.
A tarefa imediata e mais sentida pelo povo cubano é a derrubada da ditadura. Junto a essa luta, é preciso estar contra os “ajustes neoliberais” anunciados recentemente pelo governo, bem como, defender as conquistas sociais que sobrevivem. A luta pelo socialismo em Cuba passa precisamente por retomar a propriedade estatal sobre os principais meios de produção, reconquistar a planificação econômica e o monopólio sobre o comércio exterior. É necessária uma segunda revolução política e social em Cuba!
Retirado do Site do PSTU
A visita da blogueira Yoani Sanchéz ao Brasil reacendeu a polêmica sobre Cuba. Num confronto estridente entre os defensores e detratores de Yoani, jogou-se uma cortina de fumaça sobre que une a jornalista aos irmãos Castros: a defesa da restauração capitalista na Ilha.
Apesar do acordo com o governo cubano sobre a necessidade das reformas neoliberais em curso, a blogueira deseja a transformação do atual regime político numa democracia burguesa (eleições parlamentares, liberdade de imprensa, fim do partido único, etc.). Já os Castros, por seu turno, querem perpetuar a ditadura, tal como o modelo chinês. Precisamente nesse ponto reside a polêmica: capitalismo com ou sem ditadura do Partido Comunista Cubano?
Enquanto a passagem de Yoani pelo Brasil provocava polêmicas apaixonadas, o governo cubano apresentava, na Assembleia Nacional que reelegeu Raul Castro presidente do país, uma avaliação das medidas econômicas que aprofundaram a restauração capitalista na Ilha. Segundo Raúl Castro, as reformas estão criando "uma sociedade menos igualitária, porém mais justa" e insistiu em que é preciso superar "a barreira do imobilismo e a mentalidade obsoleta em favor de desatar os nós que detêm o desenvolvimento das forças produtivas". Em resumo, a processo de promoção das relações capitalistas seguirá se aprofundando, em que pese a retórica “socialista”.
Quando o (ex) Papa Bento XVI desembarcou em Cuba para uma visita oficial de três dias em 2012, o jornal Miami Herald, que não abriga nenhuma simpatia pelo governo cubano, afirmou que o pontífice iria encontrar uma Cuba “bem diferente” e que Raul Castro "aprovou a maior expansão da atividade econômica privada que já ocorreu sob o regime". O tom era eufórico, e não era para menos: o papa tinha ido “abençar” a restauração.
O capitalismo prospera em Cuba. As empresas estrangeiras dominam os setores chaves da economia e avançam sobre novos ramos. Não existem mais o monopólio estatal do comércio exterior nem a planificação da economia. A demissão em massa de funcionários públicos se articula com o aumento vertiginoso dos “trabalhadores por conta própria”, das pequenas empresas e cooperativas. O pleno emprego, a qualidade em saúde e educação públicas, enfim, as conquistas sociais da revolução, vão sendo desmontadas uma a uma, num processo incessante e doloroso.
O mais curioso, entretanto, é que diante de fatos incontestáveis, a esmagadora maioria da esquerda mundial ainda considere Cuba um país “socialista” ou um Estado “operário”. A verdade é muitas vezes desagradável, porém incontornável. O Estado cubano defende e promove as relações de propriedade capitalistas. Toda a realidade o demonstra.
Relatos da restauração
Numa viagem que fiz a Cuba, em janeiro de 2010, pude comprovar “in loco” essas afirmações. Não fiz uma viagem tutelada pelo roteiro oficial do regime, como muitos jovens do PCB, UJS e MST realizam; tampouco segui o itinerário dos turistas europeus, que inundam Cuba todos os anos e fazem o mesmo que os gringos faziam nas décadas de 40 e 50: turismo sexual, degradante e exótico. Preferi andar pelas ruas dos bairros mais pobres, conversar com os trabalhadores, os jovens, enfim, ouvir o que o povo tinha a dizer sem o filtro da censura oficial.
Dois acontecimentos me marcaram profundamente nessa viagem. Nos dia 14 de janeiro, eu estava próximo ao imponente edifício El Capitólio, numa esquina escura de Havana Vieja, quando vi uma cubana sendo abordada por um turista europeu. A conversa foi rápida, alguns minutos depois a jovem entrou num luxuoso hotel para estrangeiros. Essa mesma cena, em volume crescente, se repete aos milhares todos os dias. A prostituição retornou à Ilha.
Continue a caminhando. Na simpática ruela Obispo, encontrei José, vendedor de livros no centro de Havana. O senhor, de expressão cansada e conversa fácil, ofereceu-me obras de Marx e Lênin e me convidou a sua casa para mostrar as coleções. Em “seu” pequeno apartamento, repartido entre várias famílias, não há geladeira, tampouco cama ou fogão. Sobre uma estante antiga, os livros empoeirados. José fez-me uma oferta sem titubear: “as obras escolhidas de Marx em troca de sua camiseta”.
A decadência social e econômica
A decadência de Cuba, a partir da queda da União Soviética e da restauração capitalista, foi grave e contínua. O PIB (Produto Interno Bruto) caiu quase 35% entre 1989 e 1993; o déficit fiscal chegou a 33% do PIB em 1993. A condição de vida da população piorou fortemente. Assim, por exemplo, houve queda de mais de 30% na aquisição de calorias e proteínas por parte da população (José Luis Rodríguez García. A economia cubana: experiências e perspectivas (1989-2010). In: www.scielo.br ).
A lenta recuperação econômica, iniciada a partir dos anos 2000, não significou uma retomada no tocante ao antigo padrão de vida. Em realidade, o processo intensificou-se. Para dimensionar a regressão social verificada, basta lembrar que o valor real dos salários em Cuba, em 2011, representou cerca de 40% do valor aferido em 1989 (Archibald R. M. Ritter, Carleton University, Ottawa, Canada. Cuba’s Economic Problems and Prospects in a Changing Geo-Economic Environment ) . O salário médio em Cuba não ultrapassa os US$20 dólares.
A opinião popular é um indicador preciso do que se passa em Cuba. Na viagem que fiz, as pessoas reconheciam a “qualidade” da saúde e educação. No entanto, apontavam que esses serviços estavam piorando continuamente. Numa fila de ônibus na periferia de Havana, no dia 18 de janeiro de 2010, encontrei Pedro, um trabalhador de uma empresa estatal, quando o questionei sobre a qualidade da saúde e educação, ele me respondeu: “está piorando, cada vez mais. Desde década de 90 os serviços sociais pioram... as atuais reformas atacam ainda mais”.
Do mesmo modo, a queda na qualidade da saúde é inegável. A atenção médica segue gratuita, todavia, os medicamentos são escassos e na maioria dos casos as pessoas têm que compra-los. Assim, na viagem que realizei, comentou-me Rafael, que fazia “bicos” para sobreviver em Havana: “troco os livros por medicamentos ou roupas. Aqui em Cuba o dinheiro não existe, para mim o mais importante é se tenho acesso a medicamento ou roupas”.
Economia instável e ajuste neoliberal no Congresso do PCC
A economia cubana navega em águas turbulentas e se apoia em bases frágeis. O PIB do país não se recuperou dos impactos da crise internacional. Em 2011, a riqueza nacional cresceu apenas 2,7%. A ilha ostenta um déficit fiscal crônico (- 3,6% em 2011) e uma dívida externa crescente ($ 24 bilhões), a qual representa 29% do PIB (Maurício Front. Actualización in Perspective. Universidade de Havana).
Neste contexto delicado, a ditadura cubana impõe uma agenda de “reformas” ao país. As definições do XI do congresso do Partido Comunista Cubano, realizado em abril de 2011, aprofundam a restauração capitalista na Ilha. Em nome da “atualização do socialismo”, o governo leva a cabo um verdadeiro pacote de “maldades” contra o povo.
As principais medidas aprovadas são brutais, a saber: a) amplas facilidades para abertura de empresas de capital misto e cooperativas de trabalhadores; b) liquidação de empresas estatais deficitárias; c) cortes de subsídios estatais em todas as áreas; d) demissões em massa e extinção de benefícios sociais, como refeitórios populares, transporte escolar e principalmente da “libreta de abastecimento”, espécie de caderneta com a qual os cubanos podem adquirir gratuitamente gêneros de primeira necessidade.
Segundo o economista José Angel Jimenez, pesquisador da Universidade de Havana, “Se as mudanças propostas pelo PCC forem implementadas será algo sem precedentes. Nem as reformas feitas depois do fim da União Soviética (na década de 90) foram tão abrangentes” .
A nova localização de Cuba na divisão internacional do trabalho
A restauração capitalista está reconfigurando o papel de Cuba na divisão internacional do trabalho. A economia cubana é hoje ainda mais atrasada e dependente do que era em tempos de relação desigual com o antigo Bloco Socialista.
No que se refere à produção de alimentos, os impactos da restauração foram brutais. Em 1990, a exportação de alimentos excedia em mais de 600% a importação, porém, em 2009, o quadro se inverte: a importação de alimentos supera a exportação em cerca de 500% . Em uma frase: Cuba perdeu a soberania alimentar com a volta ao capitalismo.
É interessante notar, ainda, que a queda da produção de alimentos se deu em consonância com a “privatização” da terra. Para isso, uma parte substancial das fazendas estatais converteu-se em Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBPC), reduzindo a participação da propriedade estatal na terra cultivável de 75% para 33% .
A nova localização econômica de Cuba não se restringe ao campo. Um índice significativo para se medir o padrão de desenvolvimento de um país é o peso da indústria na composição da riqueza nacional. Para visualizarmos a trajetória descendente da indústria cubana, basta recordar que a produção industrial do país, em 2010, representou cerca de 50% do índice aferido em 1989. Em síntese: o retorno ao capitalismo desindustrializou Cuba.
As empresas estrangeiras em Cuba
Em 1995, o governo cubano deu um passo qualitativo no processo de restauração capitalista. Nesse ano foi aprovada a Lei de Inversões Estrangeiras, que permitiu o controle de setores estratégicos da economia pelo capital externo.
Infelizmente, o governo cubano não detalha o número de investidores estrangeiros nem a participação do “capital nacional” nos negócios. Entretanto, com alguns dados disponibilizados pela embaixada espanhola em Cuba, é possível aferir a dimensão e a profundidade do processo em curso. Em 2000, havia 392 associações com empresas estrangeiras, os capitais provinham de 46 países . Passado mais de dez anos, é de se esperar que esse número tenha se elevado substancialmente.
A Ilha possui a mais liberal lei de investimentos estrangeiros da América Latina. Recentemente, o governo anunciou que investidores estrangeiros agora podem ser donos de 100% dos empreendimentos. As empresas podem repatriar integralmente seus lucros, sem impostos. No Brasil, o limite de repatriação é de 27%. Mas não é só: o governo cubano proibiu a si mesmo, por lei, de expropriar propriedades de estrangeiros no país.
Por outro lado, Cuba é um verdadeiro “inferno” para os trabalhadores das empresas estrangeiras e mistas (em associação com a nova burguesia nativa). Vejamos algumas das regras do setor: a) os trabalhadores só podem ser contratados por meio de agências criadas pelo Estado; b) os investidores pagam as agências em dólares, mas as agências estatais pagam aos trabalhadores em pesos cubanos, essas ficam com 95% dos salários dos empregados; c) antes de ser contratado se realiza uma profunda investigação política do trabalhador interessado; d) é proibido formar sindicatos e realizar greves .
Os trabalhadores por conta própria e as pequenas empresas
Uma meta fundamental do governo cubano, contida na Reforma aprovada pelo congresso do Partido Comunista Cubano, é a expansão desenfreada dos trabalhadores por conta própria, das pequenas e micro empresas, além das cooperativas. Para assentar as bases para esse incremento sem precedentes da propriedade privada, o governo cubano iniciou a demissão em massa de trabalhadores estatais, que devem chegam a 1 milhão de demitidos até 2015. Os novos desempregados, por sua vez, buscam a sobrevivência em pequenos negócios privados que se multiplicam em proporções geométricas na Ilha.
O Banco Central de Cuba anunciou, agora em agosto, que o número de trabalhadores que exercem atividades em pequenas empresas privadas chegou a 390 mil . A expectativa declarada é de se chegar a 600 mil licenças até o final de 2013. Mas não é só. O ministro da economia de Cuba afirmou que o emprego no setor estatal caiu 7% no primeiro semestre de 2012 e anunciou um aumento de 35% dos trabalhadores privados ou "por conta própria" (abc.es) . Ainda segundo o ministro, a perspectiva, a médio prazo, é que o setor privado corresponda a 40% do PIB.
A ditadura capitalista e a luta pelo socialismo
No dia 22 de janeiro de 2010, fui assistir a um filme em Havana. O letreiro semi-apagado anunciava “Casa Vieja”. No antigo e charmoso cinema “Karl Marx”, centenas de cubanos assistiam atentos à película nacional. O filme tratava de temas polêmicos: homossexualidade, machismo e relações familiares. Num certo momento, um dos protagonistas dirigiu-se a outro personagem e perguntou: “nesse país se pode pensar?”. Todo cinema caiu em risadas, completando a ironia da cena.
A ditadura em Cuba amordaça e reprime violentamente. Não é permitida oposição pública, livre expressão, sindicatos independentes, partidos políticos, liberdade de organização, enfim, não é tolerada a mínima divergência organizada em relação ao regime. João, que trabalhava em um teatro em Havana Vieja, quase sussurrando me explicou a situação: “não posso manifestar minhas opiniões, não posso viajar, para falar com vocês tenho que falar em voz baixa para ninguém ouvir... queria comprar um sapato, mas não posso, meu salário não permite... Veja: dizem que a educação é boa e é verdade, mas do que adianta isso se eu não posso ter minhas opiniões livres?”
Com a restauração capitalista, o regime ditatorial se tornou ainda mais nefasto. A ditadura “castrista” que se erguia sobre a base social de um Estado operário, hoje se apoia sobre o capitalismo. A diferença em relação a qualquer país latino-americano que derrubou regimes ditatoriais na década de 80 é que em Cuba, frente ao ajuste neoliberal do governo, não se pode fazer greves, realizar manifestações ou mesmo organizar um sindicato livre.
A tarefa imediata e mais sentida pelo povo cubano é a derrubada da ditadura. Junto a essa luta, é preciso estar contra os “ajustes neoliberais” anunciados recentemente pelo governo, bem como, defender as conquistas sociais que sobrevivem. A luta pelo socialismo em Cuba passa precisamente por retomar a propriedade estatal sobre os principais meios de produção, reconquistar a planificação econômica e o monopólio sobre o comércio exterior. É necessária uma segunda revolução política e social em Cuba!
Retirado do Site do PSTU