quinta-feira, 7 de março de 2013

Os dilemas da esquerda ante o chavismo sem Chávez

O falecimento do presidente venezuelano retoma a polêmica sobre o chavismo: Socialismo do Século XXI ou o velho nacionalismo burguês?



Venezuelanos receberam com dor a notícia da morte de Chávez
No final da tarde desse dia 5 de fevereiro, o vice-presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, foi à TV anunciar a morte do dirigente Hugo Chávez. Foi o desfecho de uma luta de quase dois anos contra o câncer anunciado pelo mandatário em junho de 2011. O segredo com que o governo venezuelano tratou a enfermidade de Chávez até o seu último minuto, além de despertar inúmeros boatos e suposições, não permitiu que se soubesse o verdadeiro tipo de câncer que sofria, apenas a localidade na região pélvica.

A grande maioria da população do país recebeu a notícia da morte de Chávez com um misto de tristeza e consternação, assim como parte significativa da esquerda, alinhada nos últimos anos com os rumos do chavismo. O PSTU não se coloca ao lado da direita que comemora a morte do dirigente venezuelano. Pelo contrário, nos solidarizamos com o povo e os trabalhadores da Venezuela e lamentamos profundamente a dor que compartilham. No entanto, não podemos nos eximir de travar um debate sincero sobre o real significado do chavismo, ainda mais num momento em que o mundo discute o tema e os rumos do país que por 14 anos dividiu águas na esquerda em todo o planeta.


Nacionalismo de boina e coturnos

Oriundo de família pobre e filho de professores, Chávez ainda jovem trocou o sonho de viver do beisebol pela carreira militar. Na caserna, aderiu ao 'nacionalismo' bolivariano e fundou o Movimento pela Revolução Bolivariana. Em 1992 liderou um golpe fracassado contra o então presidente Carlos Andrés Pérez, um governo neoliberal afundado em denúncias de corrupção e que enfrentava uma grave crise econômica e política.

Três anos antes, em 1989, o governo de Andrés Pérez enfrentou um grandioso processo de mobilizações populares que virou Caracas e adjacências de cabeça para baixo. O país de então, submetido aos ditames do FMI, era um dos mais pobres e desiguais da América Latina. O aumento da passagem de ônibus foi o estopim que desatou uma insurreição generalizada. A repressão encabeçada pelo Exército a mando de Pérez deixou um saldo oficial de 300 mortos, mas o número real chega à casa dos milhares. A revolta foi sufocada, mas anos depois o país ainda era um barril de pólvora prestes a explodir. E Chávez percebeu isso.

Após o malfadado golpe contra Andrés Pérez, Chávez é preso, mas se transforma numa referência política nacional e se constrói enquanto alternativa às décadas de domínio da direita. Perdoado e solto dois anos depois, o bolivariano disputa as eleições presidenciais com seu Movimento V República. Numa conjuntura de profundo desgaste dos partidos tradicionais, o discurso nacionalista e em defesa dos pobres atrai grande parte da população e importantes setores da classe média, garantindo a vitória que superou os 40 anos de hegemonia da direita, alternados entre a AD (Ação Democrática) e o Copei (Comitê de Organização Política Eleitoral Independente).

Na América Latina, uma onda de revoluções sacudia países como Argentina, Equador e Bolívia, colocando em xeque a política neoliberal imposta pela velha elite e a direita. Chávez tenta se relocalizar nesse conjuntura turbulenta e radicaliza seu discurso, propagando o "Socialismo do Século XXI", ainda que, centralmente, não tenha provocado profundas rupturas e se proponha a governar para "pobres e ricos". Mas o seu estilo instável e choques com setores da burguesia e do próprio governo, como a direção da estatal do petróleo, a gigante PDVSA, começaram a polarizar cada vez mais o país.


Um país polarizado

Em 1999, Chávez convocou uma Assembleia Nacional Constituinte onde, entre outras reformas, aumentou o mandato de cinco para seis anos. Em 2000 vence as eleições que legitimariam a nova Carta Magna e obtém maioria também no Parlamento, além de hegemonia nos demais poderes, como o judiciário. Nos anos seguintes, concentra e centraliza cada vez mais o poder em suas mãos.

Tal situação culminou na tentativa de golpe de Estado em 2002, quando um setor das Forças Armadas e da burguesia, reunida na Fedecamaras ( Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio), sequestrou Chávez e instalou seu dirigente Pedro Carmona no Palácio de Miraflores. Os EUA reconheceram em tempo recorde o governo golpista, mas não contavam com a ação das massas para contrariar seus planos. Em um episódio surpreendente, o povo pobre da capital desceu dos morros e tomou as ruas, exigindo a volta do presidente. A ação das massas frustra, assim, o golpe relâmpago que duraria apenas 48 horas.

A partir daí Chávez se lança numa tentativa de forjar um governo de união nacional a fim de distensionar a polarização, ao mesmo tempo em que turbina os investimentos sociais através das chamadas 'misiones', financiadas com os recursos do petróleo. Os recorrentes 'lockouts' e o boicote de parte da burguesia serviram para desmoralizar e isolar cada vez mais esses setores enquanto que, no Parlamento, a desastrada política de boicote perpetrada pela direita deixou o caminho livre o chavismo garantir ampla maioria. No movimento, o governo Chávez recrudescia sua política autoritária, reprimindo greves e tentando cooptar o movimento sindical e popular.

Em 2006, seguindo sua escalada autoritária, funda o PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela), como forma de centralizar a esquerda venezuelana e colocá-la sobre sua tutela. Os partidos e organizações que não aceitaram se submeter à disciplina chavista são tachados de "contrarrevolucionários" e "traidores".


Socialismo ou nacionalismo burguês?

Desde que proclamou seu objetivo de implantar o "Socialismo do Século XXI" na Venezuela, Chávez ocupou lugar de destaque nos debates da esquerda em todo o mundo. Estaria mesmo o caudilho levando o país rumo ao socialismo, mesmo que em sua versão particular? Por mais que seja atraente a ideia de um grande líder socialista dirigindo um processo revolucionário em um importante país da América Latina, isso está muito longe da realidade.

Uma economia socialista pressupõe a expropriação da burguesia e a sua planificação, a fim de colocar os recursos do país em favor da maioria da população, superando os problemas históricos como a pobreza e o desemprego. Da mesma forma, o monopólio estatal do comércio exterior é fundamental para proteger o país do imperialismo. Em todo o processo de restauração capitalista, são esses os pilares que são destruídos a fim de permitir a volta do domínio do capital. Foi assim na então União Soviética, na China, em Cuba, etc. Na Venezuela isso não ocorreu porque tais medidas nunca existiram.

Mas e as nacionalizações? A tomada pelo Estado de algum setor da economia não serve como medida para definir um país como socialista. Governos burgueses anteriores a Chavez, como Cárdenas no México ou Velasco no Peru, realizaram nacionalizações muito mais profundas e radicais que o dirigente bolivariano e nem por isso foram classificados como socialistas.

Outro elemento importante, talvez o maior deles, para se caracterizar o governo Chávez, é o papel desempenhado pelas Forças Armadas. Em todas as revoluções em que houve a expropriação da burguesia, as Forças Armadas foram destruídas. Isso ocorre porque o Exército é quem, no final das contas, garante o domínio da burguesia e de seus interesses. E nenhuma classe social entrega de bandeja seus privilégios para outra classe. Chávez não só não destruiu as Forças Armadas, como se apoiou nelas para governar. E nem poderia destruir, haja visto que ele próprio se originou desse setor.

Se Chávez realmente estivesse levando a Venezuela ao socialismo com as Forças Armadas do Estado burguês, seria um caso único na História. Infelizmente, não é isso o que ocorre.


As nacionalizações de Chávez

Além da fraseologia radical, o aspecto mais recorrente que se aferram os chavistas para defender o governo venezuelano é a nacionalização levada a cabo por Chávez nessa década e meio de governo. Mas o que significaram essas nacionalizações?

De fato, os anos de governo Chávez representaram o aumento do Estado na economia. As nacionalizações, porém, tanto as realizadas como forma de enfrentar o desabastecimento imposto por empresários a fim de desgastar politicamente o governo, como aquelas fruto da mobilização dos trabalhadores, se deram de forma negociada, via indenizações. Mais que isso, resumiu-se à compra de ações das empresas, constituindo assim empresas mistas em que o Estado gere os negócios junto com a iniciativa privada.

Empresas mistas que atuam, inclusive, na exploração do petróleo, o carro chefe da economia venezuelana. A Lei Orgânica dos Hidrocarbonetos de 2001 possibilitou a criação dessas empresas que permitem ao Estado explorar os recursos naturais do país em conjunto com grandes multinacionais. Empresas como Chevron, Exxon-Mobil e BP atuam junto com o Estado na exploração de reservas de petróleo e respondem por algo como 40% da produção no país.

Isso significa que, se por um lado as nacionalizações parciais representaram um relativo avanço, por outro não representam verdadeiras nacionalizações, ou seja, não colocaram nas mãos do Estado a administração dos recursos naturais e da economia do país. Nesse sentido, não tem comparação com as nacionalizações realizadas por outros governos nacionalistas na América Latina . Na Venezuela de Chávez, o capital privado e as multinacionais continuam a dar as cartas.

Subproduto dessa relação entre o Estado, a cooptação de dirigentes do movimento, o capital privado e a corrupção, foi o surgimento da chamada “boliburguesia”, a burguesia “bolivariana”, que enriquece graças aos negócios com o Estado. Entre os exemplos mais proeminentes desse setor estão o presidente da Assembleia Nacional e um dos principais dirigentes do chavismo, Diosdalo Cabello e o presidente da PDVSA, a estatal do petróleo, Rafael Ramírez. Ambos figuram entre os homens mais ricos da Venezuela. Cabello é dono de três bancos, indústrias e ações de empresas que mantém negócios com o Estado.


Os problemas estruturais persistem

Nos anos da era Chávez, a pobreza teve uma significativa redução. Caiu de 49,4% em 1999, quando o militar assumiu a presidência, para 29,5% em 2011, segundo a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe). A média da América Latina é de 28,8%. Ou seja, apesar dos avanços, no Socialismo do Século XXI de Chávez, quase um terço da população está abaixo da linha de pobreza. Isso acontece porque, assim como ocorreu no Brasil nos últimos anos, os programas sociais compensatórios podem atenuar momentaneamente a miséria, mas não são capazes de resolver os problemas estruturais de um país periférico pilhado por séculos.

Ainda mais que os governos anteriores, Chávez se beneficiou da alta do petróleo no mercado internacional. Entre 1999 e 2011 o valor das exportações de petróleo aumentou 315%, puxado pelo aumento da demanda dessa commoditie. Hoje, a economia venezuelana é completamente dependente da exportação do produto, que representa 90% do total das exportações do país e algo como 30% do PIB venezuelano. Foi isso o que permitiu Chávez financiar os programas sociais e as nacionalizações, sem maiores rupturas ou enfrentamentos com a burguesia ou o imperialismo. Mas isso não vai durar para sempre.



Por outro lado, a economia do país segue vulnerável às crises internacionais. Nos últimos anos a dívida externa explodiu (passou de 14% do PIB em 2008 para 30% em 2010) e a inflação atingiu os mais altos patamares do mundo, fechando 2012 em 20%. A violência urbana, por sua vez, se transformou num grave problema social para muito além da classe média.


Chávez e o imperialismo

Assim como ocorre com o castrismo, geralmente se utiliza o argumento do enfrentamento com o imperialismo para justificar a ausência de avanços 'maiores'. Deste ponto de vista, mesmo que Chávez não tenha avançado rumo ao socialismo, pelo menos teria firmado uma posição antiimperialista na região. Mas até que ponto isso é verdade? Se é fato que houve confrontos com o imperialismo, como em 2002, também é verdade que, em essência, o chavismo não representa um projeto antagônico aos interesses imperialistas.

Apesar do discurso de Chávez, os EUA são o principal destino das exportações de petróleo da Venezuela. Ou seja, num contexto de guerras e crises no Oriente Médio, os EUA não podem descartar o país como fonte desse recurso. E o governo bolivariano, por sua vez, depende dos dólares do país de Obama. Após o desastre da tentativa de golpe em 2002, os EUA perceberam que a melhor opção era apostar na estabilidade política da Venezuela enquanto seus interesses eram garantidos. Por isso que, por exemplo, a OEA (Organização dos Estados Americanos) apoiou a decisão da Justiça de prolongar indefinidamente o mandato de Chávez quando este estava hospitalizado em Cuba e impossibilitado de tomar posse. Tal posição do órgão multilateral contrariou setores da própria direita venezuelana.

Outro trágico exemplo da submissão da política externa de Chávez ocorreu em 2011, quando o governo venezuelano deixou a esquerda perplexa ao prender o representante das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) que visitava o país, o jornalista Joaquín Pérez Becerra, e enviá-lo ao governo da Colômbia. Chávez assumiu publicamente a responsabilidade pela medida, que passou ao largo de qualquer lei internacional em defesa dos refugiados e exilados políticos, apenas para atender um pedido do presidente colombiano Juan Manuel dos Santos, sucessor de Álvaro Uribe

Nos dois últimos anos, Chávez ainda hipotecou seu apoio às ditaduras confrontadas com a Primavera Árabe. Após apoiar ativamente a ditadura de Kadafi na Líbia, até seu último minuto de vida o presidente venezuelano apoiou o ditador sírio Bashar Al Assad, que empreende uma brutal repressão contra a resistência, assassinando dezenas de milhares de opositores. Assad chegou a dizer que a morte do venezuelano representava para ele “uma perda pessoal”.


O segredo como política de Estado

Os últimos meses de vida do presidente Chávez seguiu à risca o roteiro típico das ditaduras e dos governos autoritários. Meses após anunciar que estava livre do câncer, Chávez veio a público no dia 9 de dezembro informar que sofrera uma recidiva e que viajaria a Cuba para se tratar. Confessando a gravidade da situação, no entanto, reafirmou seu vice Nicolás Maduro como sucessor político.

Seguem-se então semanas de apreensão após a complexa cirurgia que realizaria na ilha. O governo venezuelano só divulgava uma informação negativa após ela ter já vazado na imprensa, como foi a infecção respiratória que o presidente contraiu dias após a intervenção cirúrgica. Mesmo assim, cada informe era divulgado repleto de um inverossímil otimismo, passando a ideia que era apenas questão de tempo para que Hugo Chávez voltasse à ativa. Cada boato que fosse o contrário disso era respondido como um ataque da direita e do imperialismo para desestabilizar o governo bolivariano.

Na verdade, desde a recente internação de Chávez, passando pela surpreendente volta a Caracas, é muito pouco provável que a cúpula chavista não soubesse de sua real condição. Ou seja, escondeu-se até o fim o estado do presidente para que houvesse tempo de reacomodar as forças e interesses heterogêneos no interior do chavismo, e garantir o processo de transição para se perpetuar no poder. Por fim, a volta de Chávez à Venezuela no estágio final da doença dá a impressão de tentar garantir que a morte do dirigente provocasse o máximo de comoção e beneficie eleitoralmente o governo.


A responsabilidade de dizer a verdade

Respeitamos a dor diante da recente morte de Chávez. No entanto, isso não nos exime de dizer a verdade aos trabalhadores. O fenômeno do chavismo representa um nacionalismo burguês num tempo em que não há mais margem de manobra para uma política nacionalista num país periférico e semicolonial. Não há como garantir uma melhor significativa de vida à maioria do povo venezuelano sem romper de fato com o capitalismo e o imperialismo.

Mesmo inconscientemente, as massas venezuelanas estão dando conta dessa dura realidade. Porém, desgraçadamente, quando olham para os lados em busca de uma alternativa, só podem ver a direita pró-imperialista. Nas eleições de outubro passado, embora Chávez tenha ganhado com folga, o candidato da direita, Henrique Capriles, conquistou seis milhões de votos, dois milhões a mais que nas eleições passada. Com a inevitável crise do chavismo diante do agravamento da crise internacional e a ausência de sua principal figura, essa direita irá monopolizar o papel de oposição. Isso porque quase a totalidade da esquerda passou de malas e bagagens para o lado do governo, capitulando de forma escancarada ao nacionalismo burguês de Chávez.

É necessário agora que a esquerda socialista e os ativistas honestos façam uma profunda reflexão sobre o chavismo e o atual rumo da Venezuela, apostando na organização independente dos trabalhadores e num programa socialista de ruptura com o capitalismo para a crise que se avizinha. Longe de ser um desrespeito ao atual momento pelo qual passa o país, é uma necessidade premente que a história cobrará no futuro.


Retirado do Site do PSTU

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