A idéia de deus, desde o surgimento do Estado, tornou-se o fundamento
do poder. A palavra “hierarquia” significa, nos seus radicais gregos
hieros e arquê, “poder do sagrado”. Os sacerdotes foram os primeiros
agentes do aparelho coercitivo do Estado. Duvidar dos deuses, portanto,
sempre foi, na história das civilizações, um crime contra o Estado. Por
isso, o ateísmo sempre foi uma doutrina clandestina, perseguida,
denunciada, estigmatizada, e seus porta-vozes são, por milênios,
praticamente inexistentes na história do pensamento.
Apenas a partir da época moderna da Ilustração que o
livre-pensamento, o direito à dúvida e a descrença e, até mesmo, a
afirmação da inexistência de deus, tornaram-se públicas, mesmo com a
continuidade da vigência da censura policial dos livros e da perseguição
aos ateus. Na verdade, só mesmo no século XX, e assim mesmo
tardiamente, que o ateísmo pode tornar-se uma opinião tão legítima como
qualquer crença religiosa. Mesmo hoje em dia, praticamente nenhum estado
é efetivamente laico, havendo sempre concessões no campo da isenção de
impostos, do acesso à educação, etc. Há cruzes nos parlamentos e
tribunais e jura-se sobre bíblias oficialmente.
O ateísmo existe como uma antiga herança materialista da filosofia
grega e como um recente movimento social e intelectual dos séculos XIX e
XX. Nesse período, tanto o marxismo, como anarquismo, o liberalismo e o
positivismo manifestaram, de alguma forma, uma carga maior ou menor de
ateísmo explícito ou atenuado na formulação de “agnosticismo”, que foi
usada por pensadores como Bertrand Russel, por exemplo.
Para esboçarmos uma definição geral, poderíamos dizer que o ateísmo
recusa a idéia de que o destino do mundo esteja nas mãos de qualquer
deus, admitindo no seu lugar a combinação das determinações naturais, do
acaso e, particularmente, da vontade humana que, tanto no âmbito
individual como no coletivo, representa um fator central para a
descrição das histórias das vidas e das sociedades, no sentido de tentar
compreendê-las.
O ateísmo pressupõe, portanto, o primado da liberdade humana e de uma
busca de autonomia sobre si na determinação do destino humano. A idéia
de um desígnio, ao contrário, se apresenta como uma explicação das
coisas pelos encadeamentos de uma vontade sobrenatural que escaparia ao
nosso alcance.
Desde a antigüidade clássica que alguns filósofos gregos e latinos
questionaram a noção de um deus criador ou controlador do universo como
algo incongruente. Mesmo sem sustentarem um ateísmo coerente e integral
(lembremo-nos sempre que o debate do ateísmo sempre se fez de forma
clandestina e, portanto, cifrada, sem uma exposição pública total de
idéias cujo preço a se pagar por sustentá-las podia ser a morte ou até
mesmo pior do que a morte, a tortura e a humilhação), se tornaram os
marcos do pensamento cético e crítico das visões de mundo das religiões.
Desses filósofos, o mais influente foi o grego Epicuro (341 a.C. a 270
a.C.), cujo nome passou a designar até hoje, no senso comum, uma atitude
mais ou menos hedonista, o “epicurismo”, o que, na verdade, se oporia à
postura real do filósofo, muito mais dirigida para o “equilíbrio” e a
“moderação”.
Mas, além do elogio dos prazeres e do seu uso equilibrado, Epicuro
caracterizou-se por ser o primeiro a argumentar contra a idéia de que o
destino é governado pelos deuses (mesmo que não afirmasse que eles não
existiam). Sobre a idéia de um destino comandado pela vontade divina,
Epicuro, num fragmento famosos dizia:
“Deus, ou quer impedir os males e não
pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e
não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é
invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem
pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e
quer, o que é a única coisa compatível com deus, donde provém então a
existência dos males? Por que razão não os impede?”.
Este tornou-se o argumento moral clássico contra a existência de um deus supostamente bondoso: por que existe o mal?
Contra o medo dos deuses, Epicuro assim como o seu discípulo latino
Lucrécio (98 a.C. a 55 a. C.) afirmaram idéias revolucionárias, muitas
se aproximando de uma física verdadeiramente moderna, contrárias ao
pensamento dominante de sua época e dos quase dois milênios que se
seguiram, tais como:
Nada se pode criar do nada.
Não pode tudo nascer de tudo.
Nada se aniquila inteiramente.
O vazio existe.
Tudo está em contínuo movimento.
Não há desígnio.
Não há centro no universo.
O mundo não foi criado para nós.
Há outros mundos.
O espaço é infinito.
Essas idéias ofereciam uma interpretação do curso dos
fenômenos do mundo natural e humano em que não havia lugar para uma ação
ou criação divina, nem para a interferência sobre o curso da natureza
de forças “sobrenaturais”. Por isso, pode se chamar essa concepção como
“naturalista” e “materialista”.
Também em relação à alma, Epicuro enfrentou as crenças de sua época,
defendendo a tese de que, ao morrer o corpo, a alma também se dissipa,
pois só existe com o corpo e um espírito não poderia ser dotado de
sentidos, pois estes dependem de órgãos carnais. Como escreveu
Lucrécio:
“toda a substância da alma se dissipa como o fumo nas aladas auras do ar”. A morte, portanto, nada é para nós, pois quando ela vem, já não somos e quando não somos nada sentimos.
O destino do mundo na visão epicuriana, em última instância, tenderia
a uma destruição da ordem atualmente existente entre céus e terras. O
mundo não se formou conforme um plano, mas pelo movimento dos elementos.
Assim, todos os fenômenos temidos na vida individual e coletiva como
doenças ou trovões, raios ou terremotos possuiriam causas naturais e nem
a morte ou a salvação, a doença ou a cura, a fortuna ou o desatre,
dependeriam da vontade ou da intervenção de deuses.
Lucrécio, no Livro V, do
De rerum natura (Da natureza das coisas), apresentou quatro argumentos contrários a idéia de que o mundo fora criado por deuses.
Três argumentos são lógicos:
1) um ser perfeito não criaria um mundo imperfeito;
2) se deus na eternidade estava em repouso por que o interrompeu?;
3) o mundo não possuía nenhum modelo.
E um argumento é ético ou moral:
4) a existência do mal é incompatível com um deus bom.
Este último ficou conhecido como o argumento da justiça (ou
injustiça) divina, ou da teodicéia. Como, sendo bom, deus permitiria o
mal?
As idéias de Epicuro e Lucrécio existiram no mundo mediterrânico
vários séculos antes de Cristo. Com o advento da cristianização do
Império Romano, pela primeira vez, uma religião monoteísta tornava-se
dominante numa vasta área territorial. Para impor seu domínio declarou
guerra implacável contra todos os outros deuses pagãos. Mais forte
ainda, no entanto, foi a repressão às idéias negadoras da existência de
deus. O ateísmo foi considerado um crime terrível e praticamente
desapareceu da história das idéias na Europa. Epicuro e Lucrécio foram
proibidos pela Igreja Católica, seus livros queimados e seus nomes
condenados ao desaparecimento.
Somente no Renascimento, as idéias de inspiração epicurista começaram
a reaparecer, mas como sustentou Lucien Febvre, em seu livro clássico
sobre o pensamento de François Rabelais, no século XVI a descrença ainda
era algo inconcebível. Montaigne, mesmo que afirmasse a dúvida e
exigisse o senso prático na análise das coisas tampouco chegaria a
sustentar uma descrença em deus ou um ceticismo metodológico que se
curvaria apenas diante da evidência dos fatos, conforme o método
científico estabeleceria nos séculos seguintes. Muitos, como Rabelais e
Villon, zombavam da Igreja, do clero, da escolástica, e mesmo de Cristo,
dos santos e dos milagres, mas não chegavam a uma negação da idéia de
deus como a filosofia materialista faria no século XVIII.
No início do século XVIII, o pensamento ateu encontrou um
sistematizador pioneiro na figura de um padre de aldeia na França, Jean
Meslier, mas que apenas numa obra póstuma revelou seu pensamento
desafiador, resumido em “oito provas” que demonstravam que:
1) religiões são invenções humanas;
2) a fé é um princípio de erro;
3) as visões e revelações são falsas;
4) as promessas e profecias são ilusões;
5) a teologia e a moral cristã são absurdas;
6) a religião em conluio com a política é a causa da opressão e da miséria;
7) deus não existe;
8) a alma não é imortal.
Esse padre apenas revelou suas verdadeiras crenças depois de morrer,
explicando que vivera uma terrível angústia de ter que defender
publicamente o que não acreditava no seu íntimo.
Voltaire, conhecendo o Testamento de Meslier ajudou a divulgá-lo, mas
sob uma forma atenuada, adulterando e traindo o pensamento de Meslier. O
barão D´Holbach, mais coerente, também se inspirou em Meslier e em seu
Sistema da Natureza (1760), resumiu os três argumentos ateus clássicos como:
a) o da “incongruência das qualidades” (deus não pode ser bom e onipotente ao mesmo tempo);
b) o da “economia ontológica” (a natureza se basta para autocriar-se
perpetuamente, não é preciso remeter sua origem e funcionamento a nada
externo a ela própria);
c) o da “nocividade política” (a idéia de deus serve para reis e sacerdotes governarem um povo crédulo e ignorante).
Durante a Revolução Francesa, o líder jacobino Robespierre condenou
os ateus, pois, para ele, a idéia de Deus servia à manutenção da
moralidade pública. Entre os filósofos iluministas, os mais ateus também
foram os de origem mais aristocrática e menos democráticos (D´Holbach,
La Mettrie), enquanto Diderot, assim como Hume, na Inglaterra,
precisavam disfarçar seus argumentos inventando diálogos em que
personagens outros que não eles próprios podiam esgrimi-los. Voltaire
era um deísta (acreditava num Deus, mas combatia a Igreja), Rousseau
converteu-se duas vezes, primeiro ao catolicismo e, depois, retornou ao
protestantismo de sua origem.
O ateísmo não é, entretanto, apenas a não-crença em deus ou nos
deuses, mas também a descrença na vida eterna. A idéia da imortalidade
da alma é um complemento indispensável da noção judaico-cristã de uma
justiça divina com condenações e salvações eternas no inferno ou
paraíso.
As tentativas de encontrar uma explicação para o destino humano nos
caprichos dos deuses sempre respondeu ao desamparo humano diante da
sorte e a religião nasce como medo do futuro, especialmente da morte e
das calamidades. Como escreveu David Hume,
“as primeiras idéias da
religião não nasceram de uma contemplação das obras da natureza, mas de
uma preocupação em relação aos acontecimentos da vida”. Quanto mais
um homem vive uma existência governada pelo acaso (como jogadores e
marinheiros), mais ele é supersticioso. A força da religião decorre,
assim, da existência de causas desconhecidas para os males e as benesses
da vida.
Na história da crítica moderna e contemporânea da religião alguns
pensadores de origem judaica, como Marx e Freud, ocuparam um lugar de
destaque. Como comentou Isaac Deutscher, a maior contribuição do
judaísmo para a humanidade foram os seus hereges que (de Cristo a
Espinosa, Marx, Trotski ou Freud) desempenharam um papel central no
desafio inicial da ordem vigente e na abertura do pensamento para um
espaço de liberdade e amplitude de reflexão crítica. Do seio do
monoteísmo original e mais estrito do judaísmo nasceram visões rebeldes,
anti-dogmáticas e heterodoxas.
Para Marx, a crítica da religião é uma condição preliminar de toda
crítica. A religião é o consolo de uma consciência cuja vida não tem
seus nexos conhecidos. A compreensão do papel ativo da humanidade na
história seria a contrapartida a todas as formas de crenças ilusórias
construídas pela ignorância do que move o próprio destino.
Freud, de forma semelhante, vê na religião uma minoridade, uma recusa
à responsabilidade sobre o próprio destino, uma sobrevivência da
sensação infantil de amparo e temor simultâneo diante da figura paterna,
e, portanto, uma neurose coletiva. Uma ilusão sustentada coletivamente
como modo de vida, que ele considera, e tem a coragem de expor no seu
livro
O futuro de uma ilusão (1927), deverá ser superada para uma maturidade mais plena da humanidade.
A linhagem do ateísmo na história do pensamento vai de Epicuro e
Lucrécio, na antigüidade, a Meslier e D´Holbach no século XVIII, e
Feuerbach, Marx e Freud, no XIX.
Seu significado não é apenas de um debate de idéias, mas representa
uma luta prática contra o poder das igrejas, especialmente o da Igreja
Católica, que tem sido uma das forças mais sistematicamente arraigadas
ao poder. A definição da modernidade em todos os seus aspectos:
liberdade de pensamento, revolução científica, representação democrática
popular, encontrou sempre na Igreja um dos seus mais fortes oponentes.
O Vaticano fundamentou, através da doutrina do direito divino dos
reis, todas as formas de opressão das monarquias e das nobrezas na
história da Europa. Os versículos de inúmeros evangelhos (por exemplo, I
Timóteo, 6:
“Todos os servos que estão debaixo do jugo estimem seus
senhores por dignos de toda honra, para que o nome de Deus e da
doutrina não sejam blasfemados”), exigindo dos servos obediência
aos seus senhores e condenando toda revolta foram usados durante dois
milênios para justificar todos os governos, opressões e atrocidades.
O modelo do Estado moderno de uma polícia e de um sistema judiciário
centralizado, superpoderoso, obcecado pela informação, minucioso e
extremamente cruel nasceu do aparelho do Tribunal da Santa Inquisição,
usado tanto para perseguir hereges, ou seja, pensadores distintos do
dogma, outras religiões (judeus, protestantes, cultos indígenas, etc.),
ou devassos, sodomitas, e outros considerados como degenerados morais.
Cada uma das revoluções democráticas ou dos levantes sociais dos
séculos XVIII, XIX e XX tiveram de combater a hierarquia da Igreja
Católica (entre o baixo clero sempre houve honrosas exceções) como uma
das forças que se perfilavam ao lado dos mais radicais conservadores.
Muitos movimentos sociais camponeses e anti-autocráticos surgiram do
interior da própria Igreja, como ocorreu em parte dos reformistas
protestantes. Na Inglaterra, seitas radicais defenderam a comunidade de
bens, a igualdade entre os homens (algumas incluindo até as mulheres) e o
fim das hierarquias sacerdotais. No decorrer da época moderna, estas
vertentes protestantes, inicialmente progressivas, também se
institucionalizaram, se burocratizaram e se elitizaram. As grandes
Igrejas protestantes também são parte integrante do sistema de poder dos
Estados Modernos, seja na versão Anglicana ou nas diversas outras
existentes.
Politicamente, a Igreja católica foi, nos primeiros séculos da época
moderna, a principal força reacionária do mundo ocidental. Todos os
direitos sociais e democráticos foram combatidos pela Igreja Católica:
direito de voto, de representação popular, de cidadania feminina. A
Igreja justificou a escravidão e abençoou as guerras e os reis. Antes do
século XX, a Igreja Católica nunca se preocupou com direitos sociais e,
apenas como reação aos movimentos socialistas, comunistas, anarquistas e
liberais que resolveu, especialmente após o segundo-pós guerra, adotar
uma “doutrina social”.
Na agenda dos direitos civis, a Igreja sempre foi o inimigo principal
de conquistas como: direito ao divórcio, ao aborto, aos homossexuais,
ao uso de pílulas anticoncepcionais, de preservativos, de educação
sexual.
Até recentemente, nem o México nem os Estados Unidos reconheciam o
estado do Vaticano, devido à formação anticatólica da independência
desses países. Um Estado cuja cidadania é apenas masculina, sem qualquer
forma de democracia, que representa uma religião mundial recebe
reconhecimento oficial no que restou de um imenso território pontifical
que a independência da Itália terminou por expropriar, impondo o tratado
chamado de “Concordata”, que exigiu, até sua libertação por Mussolini,
que o Papa permanecesse confinado no Vaticano. Com o nazismo, o Papa Pio
XI manteve uma relação amistosa, sem denunciar o plano genocida de
extermínio dos judeus.
No século XX, a Igreja não hesitou em alinhar-se com Pinochet, em
ajudar torturadores argentinos, em manter alianças com a Máfia e a Loja
P-2 na Itália. A perda de fiéis do catolicismo para outras confissões
torna-se cada vez mais crescente. Nos Estados Unidos, a Igreja gasta
todo o seu orçamento em pagamentos de indenizações por abusos sexuais
cometidos por sacerdotes. O maior país católico do mundo, que é o
Brasil, tem, no entanto, a sua proporção de católicos na população
diminuída de 74%, na última visita papal, para 64% atualmente.
O enfraquecimento relativo do Vaticano ocorre, entretanto, num
panorama global de aumento da influência dos fundamentalismos: cristão
nos EUA; judaico em Israel e nos EUA; islâmico na Ásia, África e Europa;
hinduísta na Índia; etc. O significado atual e permanente do ateísmo é
oferecer uma visão crítica de todas as religiões, defendendo ao mesmo
tempo o direito de existência e expressão da liberdade religiosa, a
laicidade do estado e a garantia de uma educação pública, gratuita e
laica.
A laicidade e a liberdade religiosa são duas facetas da mesma atitude
de tolerância e exigência de respeito ao caráter civil do estado, que
deve defender a liberdade de todos os cultos, mas afastar-se de qualquer
vínculo com qualquer um deles, garantindo que não haja discriminação
por razões de crença religiosa mas também que as Igrejas não interfiram
na educação básica nem na pesquisa científica.
Retirado do Blog Convergência