terça-feira, 15 de novembro de 2011

A “grande mentira”, o alicerce da propaganda nazista

Hitler, Goebbels e ‘Die große Lüge’


A mentira é sempre contrarrevolucionária. Na mão de pequenos escroques é uma arma ineficaz, mas nem por isso perde seu caráter político. Muitos já ouviram ou leram a máxima de que uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade. Esta frase, em várias versões é atribuída a Joseph Goebbels (1897-1945), o ministro da Propaganda do regime nazista. A frase é uma confirmação esplêndida da própria tese que ela anuncia. Não há nenhuma fonte confiável que permita confirmar que o braço direito de Adolf Hitler foi o autor desse dito e o mais provável é que a frase e a própria autoria não passem de uma inverdade. Entretanto, não deixa de ser verdade que Gobbels foi um mestre na transformação de mentiras em senso comum e verdade. É irônico, mas o mestre da falsificação foi, assim, vítima de uma.

A ideia de que uma grande mentira pode convencer as pessoas e parecer uma verdade consistente encontra-se, entretanto, presente no pensamento político nazista. Em seu clássico Mein Kampf, Adolf Hitler dedica todo um capítulo à Kriegspropaganda (propaganda de guerra). Nessa obra, o líder nazista distingue a propaganda da instrução. A instrução pode ter por público intelectuais e letrados e estar voltada para a produção e difusão do conhecimento científico. Mas é diferente com a propaganda. Ela teria outro objetivo e um público diverso. O objetivo era convencer e seu público era “a massa”. Segundo Hitler, a finalidade da propaganda:

“é a de despertar a atenção da massa e não educar os que já estão educados ou àqueles que estão atrás de educação e conhecimento, seu efeito deve ser cada vez mais dirigido para o sentimento e apenas em um grau muito limitado ao assim chamado intelecto. Toda propaganda deve ser popular e estabelecer o seu nível intelectual de acordo com a capacidade de compreensão da inteligência mais limitada dentre aquelas as quais se dirige. Consequentemente, quanto maior a massa que se quer atingir, mais baixo deverá ser o nível puramente intelectual.” (1943, p. 197)

A simplificação dos enunciados, a repetição incessante e o apelo direto às emoções do indivíduo-massa constituíam as principais técnicas da propaganda nazista. O fundamento dessa ideia era uma antropologia filosófica que reduzia a “massa” à completa estupidez, a cérebros vazios que podiam ser preenchidos com qualquer ideia adequadamente transmitida. Para reforçar o caráter irracional do povo, Hitler identificava nele um espírito feminino: “O povo, na sua grande maioria, é de índole feminina tão acentuada, que se deixa guiar, no seu modo de pensar e agir, menos pela reflexão do que pelo sentimento” (idem, p. 201). Apelar de modo eficaz a esse sentimento era crucial para convencer de modo rápido e duradouro. Desse modo, a propaganda deveria “se restringir a poucos pontos. E esses deverão ser valorizados como slogans, até que o último indivíduo consiga saber exatamente o que representa esse slogan” (idem, p. 203). A reprodução paciente e constante de algumas ideias capazes de tocar diretamente o coração, antes das mentes, era a chave dessa técnica.

A propaganda era para o nazismo um meio para um fim, a potência da nação alemã. Qualquer meio capaz de conduzir ao fim desejado encontrava-se previamente justificado e qualquer forma de propaganda em condições de aproximar o objetivo final era recomendada. A mentira podia ser, assim, um dos recursos utilizados para apelar às emoções das massas e quanto maior a mentira, mais capaz de atemorizar, de aterrorizar e de ascender as paixões. A surpreendente conclusão, apresentada no capítulo X de Mein Kamp era que quanto maior a mentira, mais eficaz ela poderia ser:

“Resulta da própria natureza das coisas que quanto maior a mentira mais fácil será que acreditem nela, pois a massa popular, nos seus mais profundos sentimentos, não sendo má, consciente e deliberadamente, é menos corrompida e, devido à simplicidade do seu caráter, é mais frequentemente vítima de grandes mentiras do que de pequenas.” (HITLER, 1943, p. 252)

Die große Lüge (a grande mentira) foi o alicerce da propaganda nazista. Na mitologia nazista, o complô secreto judaíco-marxista era o responsável pelo colapso da Alemanha. Considerar a guerra como responsável por esse colapso era uma grande mentira. As causas da ruína da nação deveriam ser encontradas naquelas ideias estranhas ao espírito alemão que haviam sido disseminadas pelo “judeu, acostumado à mentira, e o espírito combativo do seu marxismo” (idem, p. 252). A aliança entre banqueiros judeus e comunistas alemães era tão improvável quanto as profecias de Nostradamus. Mas o aparelho de propaganda nazista se encarregou de difundir a existência dessa esdrúxula comunhão, do mesmo modo como afirmou ser Adolf Hitler a encarnação do Hister mencionado pelo adivinho.(1)

Para combater o que julgava ser Die große Lüge, o nazismo transformou a mentira sistemática em uma arma de guerra. O ministro da Propaganda de Hitler foi o responsável por essa operação. Em uma dura crítica à propaganda de guerra do governo inglês e de seu ministro Winston Churchil (1874-1965), Goebbels afirmou:

“A coisa surpreendente é que Mr. Churchill, um genuíno John Bull, aferra-se às suas mentiras, e de fato repete-as até que ele mesmo passa a acreditar. Esse é um velho truque Inglês. Mr. Churchill não precisa de aperfeiçoá-lo, pois é uma das táticas da política britânica, conhecidas no mundo inteiro. Eles fizeram bom uso do truque durante a Guerra Mundial, com a diferença que a opinião mundial acreditava nelas, o que não pode ser dito hoje.” (GOEBBELS, 1941, p. 364. Cf. tb. idem, p. 365).(2)

A ideia de que a repetição de um fato poderia fazer com se acreditasse nela independentemente de sua consistência ou adequação à realidade estava na base de toda a propaganda nazista. Mas não era qualquer mentira que poderia tornar-se uma ideologia de massas. Para que isso ocorresse era necessário que a mentira fosse conforme àquilo que as pessoas queriam ouvir. O mecanismo que aproximou as massas do discurso nazista foi a identidade construída entre a estrutura de personalidade dos indivíduos massificados e a estrutura de personalidade do Führer.

Estabelecida essa identidade a propaganda nazista podia retirar de seu discurso todo argumento racional. O Führer era a encarnação do povo alemão. Sua revolta contra as autoridades, simbolizada pela sua prisão, era o simples chamado à luta contra as autoridades e poderes existentes e, ao mesmo tempo, a afirmação de uma autoridade inconteste. A identidade entre o Führer e o “povo” permitia mobilizar os ressentimentos predominantes na pequena-burguesia (cf. REICH, 1972, cap. II). O discurso racional cedia lugar às imagens capazes de apelar diretamente ao inconsciente das massas.

A forte associação entre a nação e a terra, entre a pátria e a família organizava um discurso político no qual era a própria existência da Alemanha e de seus habitantes o que se encontrava em jogo. A precariedade da existência já havia sido afirmada por uma guerra na qual morreram quase dois milhões de alemães, pela crise econômica e pelas revoluções que marcaram os anos que se sucederam ao conflito mundial. A insegurança era o sentimento predominante na pequena-burguesia. Uma terra ilimitada para a sobrevivência e bem-estar da família alemã era uma ideia capaz de comover uma pequena-burguesia amedrontada e assombrada pelo presente.

O nazismo foi um chamado à revolta dentro da ordem. Nas três primeiras décadas do século XX a pequena-burguesia alemã lutou desesperadamente contra as forças sociais e políticas que haviam perturbado sua paz: o capital financeiro e o trabalho, personificados nas figuras de dois estrangeiros, o judeu e o bolchevique. Nessa luta revoltou-se contra as autoridades e governos que julgava serem controladas por essas forças. Mas o seu propósito nunca foi suprimir toda autoridade e sim estabelecer uma autoridade suprema capaz de restabelecer a antiga ordem de paz e prosperidade de seus antepassados.

Os nazistas, revolucionários da ordem, construíram o maior movimento contrarrevolucionário do século XX (3). Para tal apropriaram-se dos nomes do socialismo e dos trabalhadores para batizar sua organização de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (NSDAP – Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), adotaram formas de organização de massas inspiradas nos modelos do partido comunista e construíram um eficiente aparelho de propaganda. Seu discurso incendiário levou a pequena-burguesia à revolta apenas para reconduzi-la à ordem. A mentira era mais tranquilizadora do que a perigosa verdade. Mas pouco tempo depois o que havia diante do povo alemão era apenas a barbárie.


Referências bibliográficas

GOEBBELS, Joseph. Die Zeit ohne Beispiel. Munich: Zentralverlag der NSDAP, 1941, p. 364-369.

HITLER, Adolf. Mein Kampf: Zwei Bände in einem Band Ungekürzte Ausgabe. München: Zentralverlag der NSDAP, 1943.

REICH, Wilhelm. Psicología de masas del Fascismo. Madri: Ayuso, 1972.


1 Hister, entretanto não era uma pessoa e sim a denominação em latim do baixo rio Danúbio.

2 Essa é, provavelmente, a versão mais próxima da ideia de que uma mentira repetida muitas vezes se transforma em uma verdade. John Bull é um personagem ficcional criado no século XVIII e popularizado em cartoons dos séculos subsequentes que representa a Grã Bretanha. Geralmente é retratado como um homem gordo e de meia idade, vestido um casaco com as cores da bandeira nacional.

3 A ideia de que a contrarrevolução é, também, uma revolução pode ser encontrada em Marx. Em 1848, diante da derrota do movimento democrático alemão, escreveu: “We have never concealed the fact that we do not proceed from a legal basis, but from a revolutionary basis. Now the government has for its part abandoned the false pretense of a legal basis. It has taken its stand on a revolutionary basis, for the counter-revolutionary basis, too, is revolutionary.” MECW, v. 8)


Retirado do Site do PSTU

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